28 de dez. de 2008

O Porrete

Passos apertados no meio da rua e um arroto alto que vibrou meus tímpanos. Ele sabia quem estava ali passando àquela hora da madrugada embaixo de sua janela.
Abriu o olho que não estava amassado por deitar a cabeça de lado no travesseiro e suspendeu a respiração. Era aquele homem que trabalhava na borracharia e que sabia ser um espião, um voyeur de sua vida.
Ele estava em toda parte: na fila do banco, na borracharia, na padaria (ao lado da borracharia), no posto dos vigilantes noturnos, no posto de gasolina...A onipresença dele se tornou legitimamente incômoda depois de dois anos de encontros frequentes que fugiram completamente da casualidade.
Depois do arroto sonoro no meio da madrugada, vestiu o robe atoalhado muito irritado e abriu o portão para tirar satisfações sobre a conduta daquele homem.
Interrompo aqui a narrativa que corresponde aos fatos que testemunhei sobre a possível paranóia de meu marido em estar sendo vítima de perseguição.
Esta é minha versão: uma pequena amostra do que é o convívio com seres com estes enfrentamentos psicológicos e como estou usando este caso para prosseguir nas minhas investigações sobre seu comportamento.

O relato a seguir, deixei que meu marido transcrevesse tal como foi:

"Logicamente, antes de descer me muni de um porrete improvisado que peguei na garagem e escondi embaixo do robe.


-Você! (disse em tom alto para que ele me olhasse no rosto. O único rosto acordado da rua).



O rapaz se virou e disse:



-Eu?



-O que você quer de mim?




-Nada, senhor.




-Não é possível, o que você faz aqui agora na frente da minha casa?




-Tava tomando umas com o pessoal lá embaixo, to indo pra casa...




-E porque arrotou embaixo da minha janela?




-Ai, desculpa moço. Foi mesmo sem querer, acho que eu to meio alto, sexta-feira...O senhor sabe, né?




-Qual seu nome?




-Edson.




-Quantos anos você tem?




-Vinte e cinco.




-E há quanto tempo vêm me observando?




-Ah, deixa eu ver...Uns dois anos.




-Você confessou que me observa agora. Quem te mandou fazer isso?




-Ninguém, senhor. Eu gosto de olhar as pessoas, é só isso mesmo...Eu juro.




-E porque eu?




-Porque eu achei o senhor legal pra observar.




-E o que me faz "legal de observar"? Já passou pela sua cabeça que eu poderia não gostar disso?




-Ah sim, claro. Por isso eu nunca falei com o senhor antes. Achei que poderia ser meio intrometido demais e o senhor podia me estranhar. Sabe, se eu conto pras pessoas que elas estão sendo observadas, podem se sentir mal. Mas o senhor fique tranquilo pois eu faço isso porque eu gosto mesmo, como dizem, é um hobby que eu tenho.


-Eu me incomodo sim, rapaz. O que você acha que está fazendo? Isso é invasão de privacidade, posso colocar você na cadeia, moleque!



-Ah, o senhor não faria isso. Eu sou pobre, não tenho nada na vida, pra que o senhor quer me prender? Eu não sou ninguém. Além disso eu gosto do senhor.




-Você gosta de mim por que?



-Por que o senhor sempre coloca vinte reais de gasolina no carro a cada dois dias, fuma em média quinze cigarros por dia, gosta de música clássica e de dirigir sem destino. Por que o senhor sempre compra três pães de manhã e dá o terceiro pras pombas da rua, mesmo odiando a sujeira que elas fazem no seu telhado.
Eu gosto do senhor porque compra no mesmo mercado há dois anos que o conheço e raramente recebe visitas em casa, o que me fez pensar no volume de coisas que compra comparado ao tempo e o número de pessoas que consomem. O senhor mora sozinho e dorme em frente à tevê quase todos os dias, isso quando não dorme lendo alguma coisa na cama e precisa também fazer um rodízio de pneus, se eu puder aqui fazer uma sugestão.



-Eu sou um cara normal, meu filho. Um cara sozinho, do bem. Não gosto da idéia de ser vigiado. Ninguém gostaria. Mas, honestamente achei seu ponto de vista sobre mim um tanto interessante. Poderíamos um dia conversar melhor sobre isso, de verdade.


(Dito isso, deixei o porrete cair no chão e o barulho fez o cão do vizinho do lado latir).



-O senhor pretendia me bater?



-Não, o que é isso...Imagine, eu te conheço de vista há um tempo. Nem pensei em agredí-lo, mas nesses dias, a gente tem que se sentir mais seguro.




-Engraçado. Nunca pensei que o senhor fosse inseguro. Mais uma pro meu caderninho.




-Caderninho? Eu estou no seu caderninho?




-Sim, está. Mas estou acabando aqui minhas observações sobre o senhor.




-Por que? Logo agora que comecei a me sentir interessante.




-Eu acho que já sei o suficiente, só isso.




Depois dessas palavras, o rapaz se despediu acenando a cabeça e eu fiquei parado na rua, com o porrete na mão.
Me perguntei por que o garoto se desinteressou. Pensei ser superficial, pensei ser um outro cara vazio daqueles que eu criticava por sustentar opiniões copiadas da televisão ou da literatura manipulativa. Mas não, eu acho que foi o porrete no fim das contas.

E a vida não tem sido a mesma desde então. Emprestei o porrete para a garotada da rua brincar de taco.
Dia desses ele voou das mãos de um deles e quebrou minha vidraça. Paciência".




Meu marido diz ser um homem sozinho, eu não penso assim. Somos casados há vinte anos e estabelecemos nosso relacionamento na individualidade. Eu o deixo ser ele e ele me deixa ser. Somos diferentes e sabemos. Por isso nos comunicamos mais por gestos do que palavras.
Ele acorda cedo e logo sai, eu fico com as despesas da casa, com a faxina. Determinamos não ter filhos. Não tenho muitos amigos e não gosto de coisas de mulher. Foi o que ele disse que mais o atraiu quando nos conhecemos. Tenho ciúmes das ausências dele mas gosto de seu carinho todos os dias de manhã quando ele traz pães frescos para o nosso café.
Seu medo de multidões nos deixa mais caseiros, admiro sua paixão pelos livros policiais.
Temo por sua saúde quando o vejo evitar demais o contato com pessoas mas prefiro acompanhá-lo de perto, ver seus gestos e adivinhar sua alma silenciosamente, para que ele não se irrite. Assim vivemos a nossa vida.


21 de nov. de 2008

Orientação

Mãe e Adolfo
-Você não está lendo as placas, Adolfo. Vamos nos perder de novo. (rudemente)
-Mãe, eu li. Virei à esquerda e a quarta à direita depois do manicômio. Vai dar tudo certo, calma. (paciente)
-Eu não lembro de manicômio nenhum, eu lembro de ter visto aquele posto ali já, tá vendo?(agitada)
-Você viu outro posto no quarteirão lá atrás, tem um em cada canto igual, mãe. Agora me deixa dirigir. (paciente)
-Estamos dando voltas nesse fim de mundo. (resmungando)
-Vamos chegar à tempo, mãe. Calma. (paciente)
-Pare ali naquele ponto de taxi que quero me informar, os taxistas conhecem caminhos melhor do que ninguém.(agitada)
-Mãe, eu já sei como chegar! (irritado)
-Mas eu insisto, Adolfo, você pare este carro ali que eu quero perguntar! (gritando)

Mãe e o Taxista
-Moço!! (berrando para fora da janela em direção a um senhor de uns sessenta anos).
-Pois não, senhora. (apressado)
-Como eu chego na Rua Cavanhandava? (sem fôlego)
-Ih, minha senhora, tá longe...e eu tenho uma corrida agora...(virando o rosto e levantando os ombros)
-Você não pode me ajudar? Tem alguém aí que sabe? (olhando para os lados e procurando alguém)
-Cavanhandava tá lá atrás... (apontando pro outro lado da rua e fazendo um círculo com o dedo indicador)

Mãe
-Eu não disse, Adolfo, você podia ter olhado no mapa! Você sabia do compromisso há uma semana! Por que não olhou? Vamos atrasar!
(Adolfo ouve e vira os olhos)

Mãe e o Taxista
-Ô moço, psiu! Ô, me ajuda aqui moço! (gritando e agitando o braço direito para chamar o taxista)
-Como eu faço pra ir pra essa rua pelo amor de Deus que a gente vai perder o compromisso!(gritando impaciente)


Taxista
-Espera só um minuto, senhora. Olha, ali na frente, você faz o retorno e volta nesse sentido mesmo e segue, vai ter um posto e andando mais um pouco tem um manicômio, ali, hospital de doido, sabe? Aí não é a primeira, nem a segunda, deixa eu ver...Na quarta rua a senhora vira à direita e é já a Cavanhandava, to olhando aqui no GPS. (rapidamente)


Mãe e Adolfo
-Manicômio, eu não vi nenhum manicômio! (espantada)
-Mãe, eu te falei do manicômio lá atrás, lembra? (paciente)
-Eu não lembro de nada desse tipo, nem sabia que ainda existiam esses lugares. Pra mim os doidos todos foram soltos e estão vivendo entre a gente. Todo mundo é doido hoje...(reflexiva)
-Agora vamos, Adolfo, o GPS falou que tem manicômio então vamos achar! (determinada)
-Vou fazer o retorno ali, mãe. (cansado)

-Falando nisso, o que é o GPS? (curiosa)
-É um computadorzinho que colocam no carro e ele vai falando os caminhos por onde ir...(explicando pausadamente)
-Nossa, e dá sempre certo? (espantada)
-Dizem que sim...É tudo via satélite. (casualmente)
-Olha lá, aquele prédio azul ali, tá ali o manicômio! Conta até quatro, Adolfo, tamos chegando! (empolgada)

17 de nov. de 2008

Luiz

Luiz é um talento como nunca vi igual na vida. Ele consegue desenhar pontes, fazer modelos de aeronaves, criar formas aerodinâmicas com maestria com o conforto de quem faz isso há décadas, mesmo tendo somente vinte e nove anos e consegue principalmente dormir tranquilo, por volta de sete horas por noite e acordar todos os dias às sete horas para o trabalho, sem um minuto de atraso sequer.
É um homem direito, de caráter. Ele acredita que as verdades podem ser ditas mesmo que você esconda certas partes delas para não ferir as pessoas queridas. Ele pensa que com jeito tudo se faz e a qualquer um se convence.
Não direi o que eu penso sobre isso, pois a mim não cabe julgar se a verdade ideal é sempre a integral. Eu só acredito em fazer as coisas doerem menos.
Esperto também, o Luiz sabe dizer as coisas, modula seu tom de voz para cada ocasião. Já cheguei a conviver com gente que não sabia falar baixo, por exemplo. E também com gente que parece que resmunga o tempo todo que está falando.
Ele escolhe as palavras e vai seguindo sempre a linha de raciocínio do interlocutor, colocando sua opiniões sempre de forma a não contrariar ou irritar. Quer ser sempre bem visto, mesmo que todo o seu brilhantismo esteja na arte de se moldar à vida.
Ele disse que já trabalhou no Mc Donalds outro dia, disse também que trabalhou num sebo de discos usados e num supermercado quando veio de Goiânia para São Paulo, aos 16 anos.
Eu olho pra ele e fico sorrindo só, mentalizando o que ele vai fazer em seguida. Eu me divirto com as frases feitas e com a singeleza dos comentários que ele faz quando descobre algo novo. Ele tem alguma coisa de criança, de homem, de super-herói e de gente no geral que me faz feliz de ver.
Me faz feliz de ver, tenho gosto. Tenho gosto de ver gente ultimamente. Tenho gosto em vê-lo telefonar para a mãe em Goiânia e dizer que a ama no meio da semana, assim, sem ocasião nenhuma.
Luiz tem um talento incomum, difícil de ver hoje em dia.

11 de nov. de 2008

Satisfação

Letrificar : a palavra que eu designei em meu cérebro para definir o ato contínuo de romancear o cotidiano.
Parece meio bobo imaginar que alguém vê o mundo como se estivesse lendo um livro e as situações se tornassem sólidas perante os olhos a cada página.
"O movimento dos cabelos da moça ao sair do ônibus disse ao mundo: estou segura".
"Eu mal sei o nome da atendente, mas ela sempre me sorri como se quisesse me dizer algo mais..."
"O café como sempre, lotado de sorrisos aliviados."
Eu penso no que as pessoas estão pensando quando fazem as coisas. Estão pensando em agir, em atuar ou simplesmente não pensam.
Acho que só fazem. Eu, por exemplo, só vou fazendo mas no fundo eu sei que estou contida dentro de um universo que eu mesmo estou narrando. É incrível, não? E ao mesmo tempo, enlouquecedor porque as letras vão saindo de meus poros e minha cabeça fica mais ágil do que meus dedos. Aí eu respiro fundo, escrevo notas em meus comprovantes de débito bancário ou notas fiscais. Notas sobre o que for, não as mesmas notas que eu criei pros personagens da rua, mentalmente.
Não parece interessante, parece...Como dizer...Masturbatório? Não no sentido sexual.
É realmente a primeira coisa real que escrevo e vou falar sobre masturbação? É. É essencialmente uma coisa que é feita continuamente na intenção de obter satisfação, não? Então é masturbação.
Imaginar as ruas e as salas por onde entro e saio diariamente como se fossem cenas de peças de teatro ou ambientações para uma história a ser contada continuamente e cruzadamente a fim de produzir algo sólido que demonstre minha satisfação não parece semelhante? Sim.
Letrifiquei um sentimento ou ação praticada somente em meu universo aqui. Provavelmente um dia escreverei algo sobre um dicionário de expressões criadas e na letra M, as pessoas encontrariam a palavra "masturbação" com a seguinte descrição: "gesto contínuo, initerrupto e cansativo de se obter satisfação (sobre o que for que estiver em questão) seguido de alívio físico. "

4 de nov. de 2008

Joana e a ararinha

Entardece mais um dia. Joana na vila sozinha olha. Olha por recortes de cortina os reflexos do sol moribundo.
As pessoas por aí, tão preocupadas com nada. Joana queria e não queria sentir. Seu peito inflava desespero e desinflava solidão.
Um ruído visitou sua esquecida janela, um gralhar alto que perturbou seu ouvido. Viu brotar da eira do telhado a cabeça de um pássaro curioso, verde vivo com seu bico virado pra baixo.
Ela assobiou para ele e ele respondeu "uh-uh" . Ela o chamou de louro e ele de novo grasnou. As asas da ararinha não eram cortadas, devia ser uma selvagem perdida na cidade e curiosa por telhados de barro.
As cores da ararinha contra o sol eram mais brilhantes e sua silhueta barulhenta a fascinava.
Joana pensou que assim que o sol se fosse, junto iria a ararinha. E seu momento de cor se esvairia com a noite. Pensou em raptar o pássaro e guardá-lo para si, assim poderia trocar grasnados a todo o momento com o adorável ser.
Mesmo assim, não teve coragem de se aproximar da ararinha. Ficou ali, estática, até os últimos raios de sol, até onde conseguiu ver o verde das penas.

30 de out. de 2008

Trovas duras

Favela capenga aqui do outro lado da avenida. Morar constante na encosta sob os automóveis que passeiam. Imagine, o pó na roda da bicicleta de aro ferrugem. O pingado leite no café do boteco camarada. Favelar diariamente deve ser foda.

Praças com rampas, pedágios de crianças, vazios à noite não balançam. Cercas que cortam a cara do parque, luzes que descoram o verde do bosque, pisos que ralam joelhos sem sorte.

Ruas compridas nos odômetros, números de voltas. O preto chão molhado de chuva encontrando desejo do breque. Perspontadas marcam passagens, marginais caminham os pedestres, encruzilhadas, ofertas de sorte.

26 de out. de 2008

Nostalgias

Certa noite em São Paulo, como sempre, haviam de estar juntos novamente cinco pessoas separadas pelas condições colocadas pelos próprios rumos.
O tempo de espera pelo momento era longo e à medida que iam chegando, acompanhados de seus companheiros e outros amigos, iam se acomodando em cadeiras de madeira velha de bar, o mesmo bar que abrigou tantas cervejadas desprogramadas no passado.
Falavam necessariamente sobre o passado e casualmente sobre o presente, deixando o futuro para discutir com seus companheiros.
Necessariamente porque o passado era vivo e presente ali, materializado nas faces de todos e o riso fazia sentido quando cada um refletia sobre o que viveu. Casualmente porque o presente parecia sério demais para ser debatido ali onde a diversão era o propósito do encontro.
Nostálgicos e excitados, sequer lembraram de seus companheiros presentes. Fecharam-se em sua viagem no tempo colorida e acalorada por algumas doses de cerveja. Foi um momento verdadeiro de diversão, daqueles em que chega a duvidar-se se de fato ocorreu.
Foi legitimamente um reencontro.

19 de set. de 2008

Ajustes

Em que mundo você vive?
No que você está pensando?
Por que eu ainda me sinto atraída por suas camisas amassadas que nunca entraram dentro de uma calça e nem no meu armário?
Já faz tempo que eu ouvi aquela música que você chamou de nossa. E como da última vez, eu dancei. Mas agora, danço sozinha.
Eu vi há algum tempo que não podia mais fingir que você estava ali e comecei a me olhar mais no espelho. Cada detalhe de mim refletido revelava algo que eu desconhecia.
Eu não sabia que tinha sardas do lado esquerdo do rosto, ou que meu nariz era torto um pouquinho pra esquerda. Ou acho que sabia...Não devia ter importância pra mim esse tipo de coisa.
Eu sempre consegui reparar perfeitamente se o seu cabelo estava bom ou ruim, se tinha algum fio branco novo. Eu sempre consegui distinguir o seu cheiro no meio de uma multidão, como um perdigueiro. Sempre te achei mesmo sem saber que estava procurando.
É incrível como as dores no pescoço sumiram e todas aquelas coisas no meu quarto escondiam uma estante de madeira bonita, que minha mãe me deu.

Eu quero guardá-lo dentro dela, assim, você pode estar lá quando eu resolver escondê-lo de novo.



(Fragmento de algum ajuste, pode servir para você.)

10 de set. de 2008

Remédio caseiro

O grito ecoou no centro do corredor. Leila correu em disparada na direção do ruído agudo. Pareceu arrancada de um devaneio florido direto para o chão duro e frio de cerâmica bege.
Cláudio havia levado um tombo daqueles e queixava-se de dores no joelho. Ela pensou de pronto que seria mais uma forma que ele encontrara de chamar-lhe a atenção.
Leila sentou-se no chão e colocou a cabeça do homem em seu colo: Já já passa, querido... Disse com um tom mudo e com os olhos perdidos em algum lugar da parede.
Cláudio levantou-se com dificuldade e caminhou para a sala mancando e com os olhos brilhantes por causa das lágrimas retidas.
-Leve-me ao pronto-socorro, por favor... Pediu.
-Não precisa, querido. Eu faço massagem com gelol, coloco o tensor. Posso colocar uma bolsa de gelo também, meu amigo fisioterapeuta disse que é sempre bom colocar gelo.
Cláudio insistiu:
-Leila, é sério. Está doendo muito, preciso de um médico.

A moça, contrariada, agachou-se para examinar o joelho ferido: -Está só um pouco inchado, você está nervoso, Cláudio. Sente-se aí um pouco e vamos colocar o gelo.
Ele obedeceu colocando a perna apoiada na mesa de centro aos gemidos.
-Tome agora um analgésico e a dor vai passar, meu bem.
Ele obedeceu, tomou o comprimido grande e recostou a cabeça, mais relaxado. Dormiu ali, por duas horas.
Leila fez o jantar enquanto ele dormia. Tinha aprendido a cuidar bem das pessoas em casa. Remédio e carinho sempre eram muito melhores do que frios hospitais e médicos negligentes.
Saúde de verdade era dentro de casa. Preparou-lhe uma bela canja.
Na sala, o homem urrava sozinho. Doía-lhe agora toda a perna, parte de cima e debaixo do joelho. Fisgavam-lhe os quadris, costelas, cotovelos e ombros. Latejavam as veias, os ossos e músculos. E ainda batia o coração.

28 de ago. de 2008

Fragmentos do dia de hoje

A circunferência do crânio enorme eclipsava a luz do sol.
Estava sentada na calçada à toa, pensando em alguma coisa...Então, eis que a
enorme caixa craniana fez sua sombra sobre mim.
Sua portadora despejava palavras que me trespassavam e
batiam no cimento. Eu não compreendia quantas ela dizia por segundo. Eu tentei
contar, mas de repente a minha cabeça ficou cheia, cheinha delas, aquelas
palavras.
Eu já não mais conseguia ver o sol. Era um eclipse
total.
Fiz um círculo dentro da folha de papel, não queria nada mais redondo. Só
queria caber dentro dele. Queria circular.

Não consegui disfarçar hoje a vírgula que brota aqui. É um grande porém que
se embriona no centro das idéias. Mostrei a marca no rosto, embandeirada.

As pálpebras se estiram para cima enfim.

22 de ago. de 2008

Missivas da Paixão

Cara Suzana,
Por motivo de ausência de fundos em minha conta bancária, estou deixando anexada ao bilhete a última conta de telefone da casa, já que são de seu conhecimento a maioria de números de celular para onde foram efetuadas chamadas desta linha telefônica.
Acho apropriado que você pague por suas tardes de maledicência ao telefone com suas amigas da Igreja pelo menos em dinheiro, porque com certeza Jesus está ciente de tudo o que você anda falando por aí.
Caro Luís Roberto,
Venho meio desta lembrá-lo de que a ausência de fundos na conta bancária que você clama como sua, mas é conjunta é de sua inteira responsabilidade.
Eu não fui consultada em nenhum momento sobre gastos com iluminação automotiva para nosso carro e em momento algum me agradaram as luzes neon verde que foram instaladas embaixo de nosso Volkwagen mas mantive minha postura discreta pois não quis entrar no âmbito da crítica ao vosso gosto.
Cara Suzana,
Notei a presença de comportamento dúbio de sua parte, afinal, a mim foi dito que te agradou a nova decoração de nosso carro.
Cheguei a ouvir até que as luzes ornavam com seus sapatos, brincos e acessórios.
Esse tipo de atitude me faz duvidar de todo o restante de afirmações feitas pela sua pessoa já que sempre defendi a honestidade e a retidão de caráter.
Duvido inclusive de que aqueles seiscentos reais gastos no estabelecimento chamado "Delícias do Paraíso", segundo consta no extrato de seu cartão de crédito, não foram gastos em nenhum spa de beleza, segundo a Senhora declarou.
Caro Luís Roberto,
Acaso ousa afirmar que eu faltei com a verdade?
Como direito de resposta, defendo minha honra com esta nota.
Em anexo se encontra o folheto informativo do Spa Delícias do Paraíso com endereço e divulgação de serviços. O Senhor pode por ventura, entrar em contato com o estabelecimento para confirmar minha presença na data do débito no cartão, nada tenho a esconder.
Para sanar dúvidas definitivamente, declaro honestamente que considero a iluminação do Volkswagen de muito mal gosto e que eu não aprecio ir à igreja aos sábados dentro de um veículo que se assemelha a um letreiro de motel.
Cara Suzana,
Ainda insisto no fato da Senhora ter extrapolado nos valores da conta telefônica trocando receitas com as amigas da Igreja.
Na atual conjuntura do mundo, esse é um luxo que não podemos nos dar. Assim como eu revejo a iluminação que instalei no Volkswagen e estou pensando com seriedade em ter somente um backlight numa cor mais neutra, como gesto de humildade.
Penso que podemos evitar o excesso de consumismo e dedicar mais do nosso tempo aos hábitos saudáveis. Sinto que você seria mais feliz e menos pobre se ficasse mais tempo em silêncio, meditando. É minha opinião sincera e honesta.
(Esta última missiva retornou rasgada no chão da cozinha)

14 de ago. de 2008

Queixa sem gosto

O almoço parece diariamente me incomodar. Até porque quando se come só e com a cabeça solta no espaço dos últimos acontecimentos e a vista presa à imagens ao redor, a comida que escolhi para o prato parece não ter nenhum significado.
Eu não gosto do restaurante, as paredes verdes de um verde falso e indigesto me incomodam. A luz fria, indiferente que dá um ar de cozinha caseira não incentiva os alimentos a mostrarem suas cores, apesar de eu saber que é a luz mais indicada para isso.
O cozinheiro parece detestar o que faz, repõe o feijão despejando-o de uma altura que faz o caldo espirrar para os lados e sujar os outros pratos.
O churrasqueiro passeia pelo restaurante cumprimentando as pessoas com seu avental manchado de sangue, suor e sal grosso.
Eu realmente detesto este lugar, mas é o que posso pagar no momento. Gasto em torno de sete reais para almoçar e a comida não é ruim, ela apenas é comida.
Contemplo a tevê ligada no programa mais infame do horário e observo as pessoas, as mesmas do dia de antes. A mesma cenoura avermelhada e o vinagrete com repolho roxo que eu nunca tinha visto. O azeite de uma marca anônima apenas besunta as folhas do agrião, eu como folhas engorduradas.
Me trazem o suco, de laranja ou maracujá, que salva minha refeição. Ele custa dois e cinquenta e representa a parte prazerosa do momento que dura exatamente vinte minutos.
Penduro a conta e toma a última gota do suquinho. Atravesso a rua pra tomar o café de graça no trabalho.
Imagino o dia em que terei que pagar aquela conta. Será amargo, acho. Até porque faz 1 mês que almoço sem pagar, não acho digno pagar por isso. Enfim, alguém precisa ser pago pelo trabalho de fritar uma tonelada de bananas empanadas diariamente, tarefa ingrata e gordurosa. Pagarei com desgosto porque o desgosto é justo por comer sem gosto.

16 de jul. de 2008

Saindo da rotina

Há quem acredite que os votos de sim podem ser sinceramente eternos. Muitos já descreveram os tombos diários a dois, a três, os tropeços familiares, a dispariedade dos sensos. Muitos já comentaram sobre a mágica do cotidiano, a lógica dos pensamentos irracionais, muitos já contaram histórias de pessoas.
As pessoas, entidades contadoras de histórias pessoais e fictícias, inventam histórias de animais, de objetos que criam vida com a introdução da ânima, do estado movimentador do ser.
As pessoas caminham no dia a dia se deparando com cenas que as surpreendem por parecerem com a arte imitada pela tevê.
As pessoas se aproximam de tudo que seja relacionado a elas, tanto pela forma como pelo conteúdo.

Durante a aula do Professor Ernesto Carnaúba Filho, José Jorge Eduardo Carvalho, um dos alunos do curso de psicologia da faculdade, acordou durante este trecho do discurso do professor.
Era conhecido como Dedé, um membro ativo da atlética da universidade e exímio jogador de xadrez, tendo representado o curso em muitos campeonatos pelo Brasil.
Dedé gostava de jogos, quis estudar a psicologia para tentar entender por que as pessoas jogam. Estudou por conta própria os jogos de estratégia e tinha o hábito de permanecer em silêncio, apenas lendo a linguagem corporal do oponente ou interlocutor, a fim de prever seu próximo movimento.
Estando no terceiro ano da faculdade, já havia acumulado conhecimentos acadêmicos para analisar sob a luz de vários pensadores e psicanalistas as pessoas envolvidas.
Até que sua racionalidade o transformou num rapaz solitário que completava as frases das pessoas e julgava adivinhar seus pensamentos.

Dedé virou o chato da sala. Aquele que evidentemente tinha medo da espontaneidade. As meninas o chamavam de nerd, o cara que sempre dava o contra.
Os rapazes o chamavam de chato mesmo e inventavam teorias e histórias sarcásticas sobre sua sexualidade.
O rapaz passou a se considerar alguém à frente de seu tempo e incoompreendido. Fácil assim, isolou-se.

Observava com desdém os outros marcando passeios e fumando cigarros na cantina e dizia baixinho que eram um bando de estúpidos desperdiçando a saúde e juventude com as coisas mundanas e banais enquanto seu dever como jovens era a consciência, a cidadania e a paixão pela sabedoria.

Dedé sofria. Ele sofria de inveja também. Queria uma namorada, uma namorada que conversasse com ele. Não era de todo feio, tinha olhos claros e algumas espinhas, mas sua vivacidade e conhecimento acumulados deveriam impressionar uma garota interessante.
Tentou o flerte com algumas meninas que se reuniam no pátio algumas vezes. Nada.
Tentou oferecer carona, puxar conversa, derrubou livros, trocou emails...Mas toda a vez que ele começava a desfiar suas opiniões sobre o comportamento humano era rejeitado de alguma forma.

Enfim, pediu conselhos a seu terapeuta, o Dr. Euclides Macieira e ele o aconselhou a viver sua idade.
Dedé justificou que sabia o que era ter 24 anos. E julgava-se maduro e pronto.
O terapeuta insistiu: Faça coisas estúpidas e não se culpe por isso.
Dedé indignou-se a princípio mas a frase ecoava em sua mente repetidas vezes.
Como se sentiria sendo estúpido?
Imaginou-se como um neandertal desprovido de modos e com todo aspecto negativo de uma criança mal criada. Colocou-se no papel atávico do animal interior.
Entrou na pastelaria em frente à faculdade e pediu uma cerveja. E outra. E outra.
Ficou alcoolizado e vandalizou um carro em frente à pastelaria. Enfiou pregos nos pneus.
Quebrou uma placa da rua, aos pontapés. Entrou visivelmente bêbado na aula e isso obviamente ofendeu o Mestre, que o expulsou de imediato.

Dedé chegou em casa e xingou a mãe. Chutou o cão, bateu a porta.
Deitou em sua cama e dormiu.
No dia seguinte, virou notícia na tevê.


22 de jun. de 2008

A Glória

Os passos na rua molhada pela chuva das 6 da manhã tinham pressa. Era clara uma parte do céu. Que dor na bexiga.
A sola do sapato descolou-se, derretida a cola tenaz que a fixou ontem. O remédio para a bexiga comia-lhe as paredes do estômago. Era a glória.
O frio das primeiras horas do dia endureceu seu nariz, o vento embaralhou seus oitenta centímetros de cabelos negros duros e lisos como os dos pincéis. Era a glória, doía-lhe a coluna.
Bateu à porta, ninguém ouviu. O sol insistia em romper as nuvens cinzas e surgir no horizonte das 8 da manhã. A massa cinza gotejou em cima de sua cabeça. A coluna, a cabeça. Era uma glória.
Meia hora de gotejos, pinçadas na coluna, dores de bexiga, estômago e a vontade absoluta de sorver um gole de café doce e a porta se abriu, pela glória.
A roupa do varal se molhou, o cão comeu os chinelos, os cabelos que gritavam por um pente foram amarrados no topo da cabeça. O dia começava assim em trinta e quatro anos de glória.
Pronto o café, roupas de volta na máquina. O Ely Correa gritava as suas no rádio.
A bexiga não mais doía. Doía-lhe o café doce, tomado em demasia. A mancha que não saía da saia, nem pela glória.
Amanda arrumara um emprego, graças a deus. Que glória, minha filha.
Ligou para contar depois de feito o feijão com caldo grosso e cuidado com seus oitenta centímetros de cabelos despenteados e presos no topo da cabeça com uma touca hospitalar. Um cabelo no feijão seria a glória.
Enfim, hora de partir. De volta aos sapatos de plástico, às dores de coluna. O sol fez a volta no céu e agora se despedia do dia deixando as nuvens ganharem a guerra. A rua e seus pés estavam secos, mas doíam sinalizando um dia de glória.

19 de mai. de 2008

Enterrando o Tio Betinho - Parte Um

O Tio Betinho era um cara de bem. Eu pelo menos sempre tive essa impressão. Ele era quase a réplica visual de meu avô, seu irmão mais velho. Com um pouco de cabelo a mais, quem sabe.

O nome não derivava de Alberto ou Roberto. Na verdade, seu nome de batismo era Asclepíades. A própria mãe, Dona Chica, uma espanhola que se gabava de seu buço original europeu, achou melhor que o menino fosse chamado por Betinho, o que melhorou seu relacionamento social e familiar.

Não convém aventar qual a origem de seu nome original, é um mistério na família. Mas a mim interessa buscar alguma fonte que me explique o que se passou pela mente de meu bisavô quando consumou o registro do Tio Betinho no cartório.

Nós nunca fomos íntimos e eu nunca soube muito da vida do Tio Betinho, era meu tio-avô, aquele parente que você encontra em casamentos, bodas de ouro e missas de sétimo dia. Era um piadista, daqueles bem sem graça. Aqueles tios-avós piadistas que adorava carolar na igreja matriz e tomar suas doses cavalares de Fernet nos domingos de tarde, ouvindo jogo de futebol no rádio.

Vez por outra ele dormia, sentado na cadeira. Vez por outra ele saía para passear com o cão, um lingüiça chamado Mussolini, pelo Bairro Assunção.

Era um tio-avô normal, o mais novo, acho. O único irmão vivo de meu avô.

Num desses dias da semana minha mãe veio contar que o Tio Betinho estava internado, tinha tido um infarto.

Meditei sobre a normalidade das coisas: um senhor de setenta anos, o histórico cardíaco da família, o Fernet...

Nada causou muita comoção familiar. É algo que se espera de alguém ao atingir essa faixa etária, uma loteria diária onde se marcam os dias em que não houve surpresas desagradáveis em relação à saúde.

É mórbido falar assim, eu sei. Mas o Tio Betinho era o mais novo. Ele tinha setenta anos...Enfim, um infarto é algo corriqueiro. Haveria de ser somente um susto. Pra dar uma levantada na vida e deixar que um dia, ele estivesse sentado em sua cadeira ouvindo o jogo e seu coração simplesmente parasse de bater, porque a garantia acabou.

Não foi. O hospital o reteve por duas semanas. E no dia em que o coração do Tio Betinho deu sinais de recuperação, ele teve alta.

Dois dias se passaram e no fim do segundo dia, ele teve um derrame cerebral que o atingiu como um raio, levando-o de vez.

Assim se foi o Tio Betinho, sem mala e sem cuia e sem seu Fernet, pendurar suas chuteiras. Uma morte que não surpreendeu a ninguém mas que ninguém esperava.

Enterrando o Tio Betinho - Parte Dois

Meu avô, o irmão mais velho, não se ocupou das funções funerárias. Deixou a cargo da prole (que eu desconheço), o desempenho desse papel.

Não fui vê-lo, mas soube que meus tios (num grande gesto sensível e consolador), trataram de beber o finado.

Meu avô não bebeu, mas tentou sorrir e ver tudo com naturalidade, já que a morte é a certeza mais explícita da vida. Eu via os olhinhos dele atrás dos óculos enormes, por vezes com brilho de emoção.

A verdade é que o conjunto familiar tentou fazê-lo não pensar com todo o seu dom italiano de falar e rir e beber e falar, tudo ao mesmo tempo. Mas os espanhóis choram. E riem também e bebem Fernet nos domingos de tarde.

O velório se deu no Cemitério da Boa Viagem, também no Bairro Assunção. Me questiono o nome “boa viagem”. Presumo que este termo seja aplicado a uma viagem bem-sucedida, sem assaltos, pneus furados, sem extravio de bagagem e sem chuva no Nordeste.

Ultima viagem, seria o termo, por mais tétrico que isso possa soar é perfeitamente aplicável. O teto de madeira abafando o rosto daquele corpo e o carrinho transportando o leito até a última morada poderia ser considerado como a última jornada, se o Tio Betinho estivesse conscientemente participando disso e comentando em forma de piada infame. Mas era a sua boa viagem.

Chovia sem parar, mais um clichê para um velório seguido de enterro. Outra do Tio Betinho. O teto do velório vazava goteiras sobre os participantes. Minhas tias comentavam distantes, distantes demais de todo o contexto. Olhei pro Tio Betinho ali, de longe. Meu avô, ao lado, ouvindo as palavras do ministro que alongou demais no discurso sobre a vida e a morte. Minha avó, comentando sua última passagem pelo clínico.

E todos ali, numa montoeira dispersa, desinteressados na última infâmia do Tio Betinho, ser enterrado num domingo de chuva.

Encerrado o protocolo de despacho do homem, segue o cortejo para o Boa Viagem. O Jazigo era logo na primeira rua, tradicional de família co-fundadora da cidade.

Três profissionais de enterro de cadáveres foram acionados e após a última flor que foi jogada no caixão, seguraram as alças e introduziram a urna pela abertura do jazigo.

Logo naquela chuva, constatou-se que o caixão era largo demais para passar por lá, depois de umas três tentativas.

Como ninguém pensou nisso? Como antigamente as pessoas eram satisfeitas com caixões menores?

O Tio Betinho estava alojado em um caixão modelo Classic, com alças de cromo e latão, uma fortuna parcelada em algumas (muitas) vezes. Mas que valeu a pena.

Um dos coveiros girou o sarcófago a 30 graus, pensando que de lado, haveria de entrar.

Os homens estavam ensopados, a família aflita, os convidados então (os mesmos que beberam o finado) sorriram discretamente com o embaraço geral.

Eu imaginei o Tio Betinho sacolejando inerte naquele paletó de madeira. Senti até um enjoozinho. Tentaram de tudo, girar, inclinar...O Tio Betinho devia estar desesperado e ao mesmo tempo rindo do chiste que aplicou na família toda.

Um dos coveiros diz: “E se tirarmos a tampa?” e o outro retruca: “Não, aí o cara vai cair”.

O mesmo torna com outra idéia: “Vamo tirá as alça”.

Alguém da família diz: “Nãaaao”.

Com sabedoria, o último sai de cena e volta novamente com uma marreta e uma talhadeira dizendo: “Vamo quebrá issae”.

E com a anuência da nauseada família do falecido, executaram a obra e deixaram finalmente que o Tio Betinho descansasse em (quase) paz.

25 de mar. de 2008

Eu não gosto de calcinha

Deposito a garrafa térmica sobre o balcão de vidro que também era um armazém de frios e legumes, aqui no bar da esquina.
Um homem entra no bar e dialoga com a figura vestida de preto sentada, tomando café com leite.
Falavam bobeiras sobre futebol. Ao fundo na televisão de quatorze polegadas com volume elevado, percebia-se o show de forró do "Grupo Calcinha Preta".
Pedi que a térmica fosse lavada e depois enchida. A figura de preto virou no banco e eu vi uma águia tatuada no seu ombro esquerdo. Aquela águia fiel, do uniforme preto e branco. Virei os olhos.
O rapaz deveria ter uns 18 anos e revelava seu fanatismo quase religioso naquele time. Estava vestido, tatuado e falava o tempo todo no assunto. Tomava café com leite por ser uma mistura de preto e branco, dizia.
A televisão ao fundo grita "Eu gosto de calcinha!". Silêncio constrangedor, seguido de risada geral.
O menino diz:
Puta música de São Paulino!
E faz uma teoria para explicar o fato e dizer que seus amigos de torcida nunca ouviriam aquele tipo de música.
Minha impaciência pelo café me fez interromper a conversa:
Com licença...Eu sou são paulina e não gosto de calcinha. Se é que minha opinião vale.
O rapaz de preto vira-se para mim, constrangido, enquanto faço aquela minha carinha de lado, meio sorridente.
O café está na térmica, hora de partir. A garçonete me deu uma piscadela e pela primeira vez me disse pra ter um bom dia.


11 de mar. de 2008

Fantasiando

Ricardo coçou a cabeça, impaciente. Aquele quarto parecia tão pequeno...

José e Martinha estavam dormindo em seus respectivos quartos e Wanda não parava de falar.

Jogava-se na cama, de tempo em tempo, de costas, como se não houvesse cama ali e ela se jogasse de costas para o nada.

Ricardo, sentado na poltrona de leitura, olhava-a disfarçadamente por cima do livro como se estivesse absorto na leitura. Eram crônicas de um autor russo, mas ele só notava o movimento de Wanda, que cansara de jogar-se na cama e tinha começado uma nova modalidade de dança com seus milhares de lenços de cabelo.

“Me casei com uma maluca” , pensou. Ela cantava, rodopiava os lenços no ar, dava saltos de ballet, olhava-se no espelho, enchia os lábios de batom e voltava a dançar.

Ela dizia: “Venha comigo, vamos dançar!”. Segurava o marido pela mão e jogava seus lenços em cima do livro dele. A princípio foi irritante, depois, o livro foi fechado.

Ricardo estava exausto de memorizar os nomes dos personagens russos que mudavam conforme cresciam, olhou a figura no meio do quarto, bagunçando os chapéus, provando óculos escuros e cantando o repertório inteiro do Chico Buarque. Ele riu de lado e disse para ela: “Você é mesmo uma doida”.

“Não sou doida, meu amor”, disse ela. E arrematou com um “Vem cá, vem se fantasiar comigo”.

Ele relutou, mas aceitou, afinal, estavam sozinhos. Logo estava ele com sua roupa de mergulho, cantando “A Rosa” do Chico. E agora, os dois rodopiavam e gargalhavam trocando de chapéus, trocando de sapatos, imitando os trejeitos de Elis Regina e Maria Betânia. Ricardo agora vestia camisa branca, marcada dos beijos de Wanda no colarinho. Perfumaram-se e dançaram tango. Wanda tinha uma escova de cabelo na boca, que fazia as vezes da rosa. E riam, riam alto. Tão alto que as crianças bateram na porta, bem no momento em que faziam amor. Ela vestida de columbina do carnaval passado e ele com seu terno xadrez.

19 de fev. de 2008

O ovo

Maquinalmente, de meu observatório no alto da prateleira fiz a ronda visual nos outros produtos companheiros de data de validade.

Cansei-me de olhá-los porque representavam as coisas que mais ficavam nas gôndolas e que somente mudavam de lugar de acordo com as promoções, etiquetagens e remarcações decididas pelo o grande deus, o dono da loja. Eram os velhos de guerra que mantinham os mesmos vícios de sempre: falar mal dos perecíveis e fazer piadinhas infames sobre sua pouca permanência no local.

Eles se gabavam de terem sido trazidos de outros países, mesmo não sabendo que aquilo havia ocorrido porque o dólar havia baixado e facilitado a vida dos importadores.

Eu sempre soube de tudo isso e me mantive neutra, livre de radicais e extra-virgem em minha condição enlatada.

Uma noite, em minha vigília ouvi um burburinho na sessão de pães, ovos e leite.

Eles discutiam sobre suas origens, procedimentos e valores nutricionais. Coisa chata pra caramba que todo mundo sabia de cor. Eram novatos, tinham sido fabricados no dia anterior e estavam se vangloriando de sua frescura e aroma. Nem dei bola praquilo, mas algo me chamou a atenção.

Dentre eles, naquela sessão, havia um pequeno ovo a discursar sozinho em sua covinha do porta-ovos sobre a liberdade de cada indivíduo fazer o quiser da vida e questionava veementemente o destino que os consumidores os davam, após a compra.

Os outros ovos o ouviam calados e atentos, achando que este ovo era um lunático ou simples agitador. Mas ele não era.

Ele era um ovo consciente de seu valor protéico e certo de sua origem nobre galinácea e se negaria a ser jogado em alguém que faria aniversário ou numa careca de prefeito corrupto.

Esse ovo bradava para o consumidor que ouvisse seus apelos, que o libertasse de sua clausura e transformasse seu conteúdo em doces merengues, brilhantes quindins e lindos bolos de aniversário.

Que ele não fosse enterrado para apodrecer e ficar velho. Que ele não fosse furado e esvaziado para ser pintado na páscoa. Que parassem de associar sua origem com coelhos! Que bom mesmo era ser omelete, porque podia se reunir com amigos e trocar idéias.

Esse ovo ficou falando a noite inteira sobre isso, até que todos os artigos à venda no supermercado começaram a reclamar do barulho.

Os eletrodomésticos pediam silêncio e os artigos de jardinagem começaram a ameaçar o pobrezinho tão frágil e tão corajoso de quebrar sua casca e deixa-lo lá, se esvaindo em claras...


O ovo se calou, recolheu-se à sua covinha e deu um grande suspiro, talvez o maior de sua vida perecível.

18 de fev. de 2008

Lixo, turbante, consciência.

Certa noite de sexta-feira procurei por algumas bolachas jogadas no chão do carro no balanço diário das sobras que se acumulam nos cantinhos. Eram nove horas e eu tinha fome. Sabe-se lá quantos germes, bactérias, fungos e afins vivem aglutinados naquele pó ou se as bolachas tivessem sido alimento de algum animal estranho e fedido que deixa seu cheiro de vez em quando por lá. Melhor eu não saber.

Seguia caminhando pela calçada, com a chave na mão para desativar o alarme e notei um casal tendo uma discussão de relacionamento publicamente.

A mulher, juntava sacolas de plásticos variadas em seus braços. Devia ter uns 43 anos, pra mais. Tinha uma saia longa e um lenço amarrado na cabeça em forma de turbante.

O homem parecia mais novo e vestia uma bermuda jeans calça-cortada e estranhas botas que pareciam bem maiores que seus pés.

Ela grita pra ele, apontando para uma pilha de garrafas e latas espalhadas pela calçada:

-Râmo, home. Cata tudo isso aí.

-Tô catandu, calma mulé.

-Faiz uma hora que ocê tá catando. A gente ta assustando as pessoa.

O rapaz atrapalhava-se com tantas e garrafas vazias e poucos sacos. A mulher, sobrecarregada e impaciente, gritou:

-Você é um lixo!

Imediatamente o rapaz replicou de cabeça baixa.

-Eu não sou lixo, lixo é você.

A mulher do turbante, com despeito, atira suas sacolas no chão e vai de encontro com o rapaz que continua de cabeça baixa.

- Você não presta pra nada. Se não desse tanto trabaio essa coisa eu já teria ganhado mundo, suzinha.

O rapaz parece não se incomodar. Mas ela insiste:

-Eu digo, você é um lixo.

Ele a encara e diz:

- Eu não sou um lixo.

- Então, o que você é?

- Eu sou um catador de lixo.

9 de jan. de 2008

Organizações

Paula:
-Não viaja

Jorge (em tom indignado):
-Como assim? Você acha normal que alguém numa fila de restaurante repare na etiqueta interna da minha camisa?

Paula ( friamente) :
-Ninguém prestaria atenção nisso se não fosse um neurótico igual a você.

Jorge:
-Eu? Neurótico? Só porque o meu sistema dá certo? Eu sei o que você tem. Você tem inveja por não conseguir ter a minha organização e fica resmungando nos cantos quando eu te peço uma mísera opinião.

Paula (friamente):
-Jorge, você está brincando, não? Não acho possível que você pense que eu tenho inveja da vida obsessiva que você leva. Bem que sua mãe dizia que você tinha mania de fechar todas as portas abertas logo depois que começou a andar. Eu devia ter previsto que dividir uma casa com você seria morar no inferno.

Jorge (aumentando o tom de voz):
-Será que você poderia dizer por favor onde estão meus cotonetes? Eu disse que eles deveriam ficar na parte direita da prateleira do meio para evitar o vapor do box e não...

Paula:
-Tá vendo? Depois diz que não é obsessivo...Os cotonetes estão no criado mudo.

Jorge (agitado):
-O que diabos estão fazendo lá? Eu não disse que TINHAM que estar no banheiro, no lugar que seria melhor para eles e para nós? Será que é muito difícil de entender. Quer que eu desenhe, faça um gráfico ou um esquema pra ajudar?

Paula (impaciente, andando de um lado pro outro):
-Tome os malditos cotonetes e enfie eles naquele lugar, seu imbecil sistemático de merda!

Jorge (carinhosamente):
-Amor, não precisa ficar nervosa. Olhe, estão lá de novo. Não estão perfeitos? Aliás, me diga o que achou da nova disposição das panelas da cozinha? O que achou das embalagens dos sapatos etiquetadas com a data de compra e o tempo de uso? Gostou da classificação dos absorventes por ordem de uso de acordo com o fluxo menstrual ao longo da semana? Ah, me diga. Faço tudo por você.

Paula (sorrindo e sentando-se na ponta da cama):
-Claro que gostei, meu amor. Fico feliz quando faz tudo isso pensando em mim.

1 de jan. de 2008

Bolinhos de chuva

Hoje deve chover.
Se não fosse tão comum a pressa, eu simplesmente sentaria no banco do jardim e contemplaria as gotas grossas de chuva batendo nas folhas.
Decido não olhar. Decido levantar-me, lavar o rosto e fritar bolinhos de chuva...Eles têm o poder de colorir o tempo.
Engraçado como os atos automáticos de viver podem nos fazer parar de viver. Encontro pessoas felizes que vêem a mística e o sobrenatural em tudo para o alívio do medo de não saber.
Encontro pessoas que tomam pílulas para colorir a vida, os dias e os relacionamentos. Tomam pílulas pra não agredir o chefe, a mulher, os filhos. Pra pararem de falar bobagens. Pra conseguirem dormir com suas culpas e pra renderem mais no trabalho abraçando mais coisas pra fazer. Pra fugir.
Eu quero saber o que é fugir. Se tantos o fazem e parecem continuar sofrendo, parecem não fazer. Parecem fingir que não estão sofrendo. Parecem sorrir mecanicamente porque a pílula está agindo.
E os místicos sorriem por causa da fé em algo que não se sabe. Justificam seus males no sobrenatural. Consolam-se nas forças ocultas e alimentam-se das energias de fé.
No que creio? Não sei. Estou revendo os efeitos dos bolinhos de chuva salpicados de canela que fritei de tarde. Eles podem não ter efetivamente colorido meu dia. Mas mataram minha fome física.