28 de fev. de 2009

Correr

Marcelo caminhava e sua velocidade aumentava. Queria escapar de seus pensamentos.
Marcelo andava e fugia, o asfalto captava sua emoção. As borrachas do tênis rangiam, ele rangia.
Marcelo encontrou Felipe. Felipe andava na velocidade de seus pensamentos.
Felipe andava e corria, o vento acompanhava sua emoção. Felipe ouvia estremecer o tímpano com as rajadas de vento, estremecia.
Marcelo e Felipe corriam, empareados pela vitória. Vieram Rogrigo e Diego, cansados de guerra e fugidos de medo e culpa e pegaram os tais na última volta.
Marcelo, o que liderava, desritmou e deixou que os dois apressados corressem a ultima volta.
Felipe, em segundo lugar, observava Marcelo e seu alívio, querendo algo de seu espírito. Rodrigo e Diego ofuscavam sua visão deixando que se aborrecesse.
Rodrigo e Diego pararam para água e risos, Felipe zangou-se. Quis gritar com os moços que riam na corrida de sua vida e correu mais.
Marcelo ainda se mantinha rei e Felipe a seu alcance. Linha de chegada adiante e Rodrigo e Diego em seu calcanhar. Seu coração adiantou o que sentiria: Marcelo cruzou a linha. Tudo bem.

26 de fev. de 2009

Cordel existencialista moderno

Mendigo previdente

Vai perdido na rua
Com julgamento aflito
Quem no estar se situa
No mais simples conflito
Que a calma repouse
No frasco restrito
A quem mais atua
Neste destrito

Caminhoneiro sonhador

Durmo solene em berço de ar
Na cama de nuvem a vagar
Ventos carregam-me pelo salão
Vejo surgindo o meu caminhão
Brilhando sublime com suas rodas ouro
Já estou sentindo seus bancos de couro
Pelo Brasil vou viajar
Se o sono não me levar

Bilheteira reflexiva

O dia catraca na bilheteria
A noite também, mas com brisa fria
Papel, papel de vento em vento
O metrô é um lamento
Quilômetras vezes meu coração
Quis parar numa estação
E sentir o momento
De passar somente um dia

23 de fev. de 2009

Maria varria

Que vida crua que anda na rua de dia

Nos pontos de esquina, tamanha tortura

As marcas brancas no preto não dizem por onde andar

Dizem somente à pressa para parar

Todo dia em que ela se vestia

Era mais um quadrado riscado na correria

Era mais um dia em que ela varria

E suspirava entre uma poeira e outra

“Ó Virgem Maria”

De tanto ouvir o lamento, a virgem não descansava

Queria descer e lustrar a prataria

10 de fev. de 2009

Limites

Aqui para baixo vive um homem com seu cão.
Onde o terreno termina há uma cerca de arame e troncos podres que praticamente não divide o pedaço nosso do pedaço do homem.
Sabemos disso e mesmo assim não nos dignamos a caminhar pela propriedade do homem já que este homem é de origem muito humilde e campestre e vive numa espécie de alheamento social por mais de vinte anos, além de portar uma espingarda a qual não sei se funciona de fato. Não é uma boa idéia realmente.
Fizemos a ronda pelos vestígios de estábulos antes da cerca muitas vezes e caçamos montes de escorpiões a fim de queimá-los na fogueira e ver os bichinhos estrebuchar, retorcer e enrugar vencidos pelo calor que derretia aquela carapaça externa. Sempre rodeando em volta do terreno ao lado, querendo saber o que se passava por lá.
Engraçado como o cão dele caminha com um sino no pescoço para ser localizado. Toda a vez que ele se aproxima, a gente dá risada e diz que o Papai Noel chegou. É um vira-lata prognata caindo aos pedaços chamado Dumbo.
Nós não entendemos como o homem deu esse nome ao seu animal já que acreditamos que este homem nunca foi ao cinema, nem à cidade, nem tem tevê, não tem livros e muito menos sabe ler.
Ele anda por aí com suas galochas pretas que vão até o meio das coxas, o chapéu de palha todo desfiado e roupas que não sabemos como conseguiu, já que ouvimos por aí que ele não vai à cidade por alguns bons anos.
Um dia, o vizinho de cima nos disse que o terreno de baixo tem uma casa que fica depois do bosque e que está casa está trancada há mais de dez anos esperando que seus habitantes voltem de viagem. Perguntei para meu pai se era verdade que um dia morou gente naquele terreno abandonado do homem maluco das galochas e ele disse que sim.
Era uma família japonesa bem rica e com uma filha doente que teve que ser tratada nos Estados Unidos. A família nunca mais voltou daquela viagem, o que nos fez pensar que alguma tragédia havia acontecido e por isso tiveram que deixar a casa aos cuidados do Maluco de Galochas e seu cão, Dumbo.
Tínhamos treze e quatorze anos e meio, não era idade para se aventurar entrando na propriedade alheia para caçar mistérios sobre casas abandonadas e famílias japonesas desaparecidas, mesmo assim, a curiosidade sempre fez as pessoas terem um pouco mais de coragem em qualquer idade.
As cercas que não cercavam o terreno permitiram nossa passagem através do limite que sempre respeitamos e logo estávamos atravessando o milharal onde o homem tinha montado um espantalho com cabo de vassoura e algumas roupas que não lhe serviam mais. Seria uma visão pior se existissem corvos na região.
Depois do bosque, a tal casa que queríamos visitar estava ali com as paredes que eram brancas cobertas de limo e com as janelas enferrujadas de onde escorria aquele líquido laranja manchando a pintura.
Não era assustadora e nem parecia assombrada. Acho que não queríamos que fosse ao final, queríamos somente um motivo para cruzar a cerca.
Ouvimos o sino do pescoço de Dumbo ao longe. Ele vinha rosnando e latindo com seus dentes para frente. O que não parecia nada ameaçador, só muito engraçado.
Era um cachorro de idade querendo fazer seu trabalho, era valente, mas não tinha condição nenhuma de nos atacar.
Espantamos o Dumbo com um pedaço de pau e logo ouvimos o sino se afastar de novo, conforme ele corria para o barracão aonde vivia o Homem de Galocha.
A porta estava podre, foi fácil de abrir. Entramos na casa e foi a coisa mais estranha que já fiz na vida.
A sala estava intacta com sofás, poltronas e mesa de jantar. A mesa estava posta para quatro pessoas com pratos, talheres e copos. Havia uma panela fechada em cima dela também.
A cozinha tinha a louça na pia, acumulada depois de ser lavada. A esponja de lavar estava dura, seca e empoeirada dentro da pia.
No quarto, as camas desarrumadas e os armários continham roupas penduradas nos cabides.
Tivemos a sensação de que os japoneses saíram da casa pensando que voltariam no mesmo dia, como se sai de casa só para ir ao mercado ou banco. Não, eles não voltaram mais em vinte anos e tudo estava empoeirado e coberto de teias de aranha.
Perguntamos-nos como aquilo tudo aconteceu e resolvemos voltar para casa, afinal, já tínhamos visto o que queríamos ver.
O sino soou de novo e dessa vez, o homem veio com sua espingarda enferrujada na mão. Perguntou-nos quem éramos e o que queríamos.
Meio sem jeito, dissemos que era só curiosidade de criança mesmo, que tínhamos ouvido falar que ali havia uma casa e queríamos ter certeza. Pedimos muitas desculpas por ter invadido a propriedade e prometemos não voltar mais lá por tudo quanto era santo.
O homem disse que chamaria a polícia. Sentimos um calafrio e começamos a chorar.
O homem disse não precisávamos chorar e que entendia o que era ser curioso.
O homem convidou-nos para ir a casa dele e perguntou se estávamos com sede. Dissemos que sim.
O homem deu-nos água para beber em latas de ervilha e pediu as latas de volta.
Não fizemos nenhuma pergunta. Ele nos guiou até a cerca que não cercava e disse para nunca mais voltarmos lá e não contarmos para ninguém o que vimos.
Voltamos em silêncio para casa e ficamos assim por mais um bom tempo sem tocar neste assunto e nem pensar nele sequer.
Até hoje eu não sei o que houve com a família que morava ali, japonesa ou não. Sei apenas das historias que ouço por aí. Deve ter havido algo muito sério para que eles não voltassem mais para casa e com certeza o Homem de Galocha sabia, mas era algo que não devia ser contado, pois era particular, creio eu.
Desde então, não tive mais vontade de pular muros e cruzar cercas. Meu espaço parece meu, parece seguro e repleto de histórias que eu sei contar do começo ao fim.