25 de mar. de 2008

Eu não gosto de calcinha

Deposito a garrafa térmica sobre o balcão de vidro que também era um armazém de frios e legumes, aqui no bar da esquina.
Um homem entra no bar e dialoga com a figura vestida de preto sentada, tomando café com leite.
Falavam bobeiras sobre futebol. Ao fundo na televisão de quatorze polegadas com volume elevado, percebia-se o show de forró do "Grupo Calcinha Preta".
Pedi que a térmica fosse lavada e depois enchida. A figura de preto virou no banco e eu vi uma águia tatuada no seu ombro esquerdo. Aquela águia fiel, do uniforme preto e branco. Virei os olhos.
O rapaz deveria ter uns 18 anos e revelava seu fanatismo quase religioso naquele time. Estava vestido, tatuado e falava o tempo todo no assunto. Tomava café com leite por ser uma mistura de preto e branco, dizia.
A televisão ao fundo grita "Eu gosto de calcinha!". Silêncio constrangedor, seguido de risada geral.
O menino diz:
Puta música de São Paulino!
E faz uma teoria para explicar o fato e dizer que seus amigos de torcida nunca ouviriam aquele tipo de música.
Minha impaciência pelo café me fez interromper a conversa:
Com licença...Eu sou são paulina e não gosto de calcinha. Se é que minha opinião vale.
O rapaz de preto vira-se para mim, constrangido, enquanto faço aquela minha carinha de lado, meio sorridente.
O café está na térmica, hora de partir. A garçonete me deu uma piscadela e pela primeira vez me disse pra ter um bom dia.


11 de mar. de 2008

Fantasiando

Ricardo coçou a cabeça, impaciente. Aquele quarto parecia tão pequeno...

José e Martinha estavam dormindo em seus respectivos quartos e Wanda não parava de falar.

Jogava-se na cama, de tempo em tempo, de costas, como se não houvesse cama ali e ela se jogasse de costas para o nada.

Ricardo, sentado na poltrona de leitura, olhava-a disfarçadamente por cima do livro como se estivesse absorto na leitura. Eram crônicas de um autor russo, mas ele só notava o movimento de Wanda, que cansara de jogar-se na cama e tinha começado uma nova modalidade de dança com seus milhares de lenços de cabelo.

“Me casei com uma maluca” , pensou. Ela cantava, rodopiava os lenços no ar, dava saltos de ballet, olhava-se no espelho, enchia os lábios de batom e voltava a dançar.

Ela dizia: “Venha comigo, vamos dançar!”. Segurava o marido pela mão e jogava seus lenços em cima do livro dele. A princípio foi irritante, depois, o livro foi fechado.

Ricardo estava exausto de memorizar os nomes dos personagens russos que mudavam conforme cresciam, olhou a figura no meio do quarto, bagunçando os chapéus, provando óculos escuros e cantando o repertório inteiro do Chico Buarque. Ele riu de lado e disse para ela: “Você é mesmo uma doida”.

“Não sou doida, meu amor”, disse ela. E arrematou com um “Vem cá, vem se fantasiar comigo”.

Ele relutou, mas aceitou, afinal, estavam sozinhos. Logo estava ele com sua roupa de mergulho, cantando “A Rosa” do Chico. E agora, os dois rodopiavam e gargalhavam trocando de chapéus, trocando de sapatos, imitando os trejeitos de Elis Regina e Maria Betânia. Ricardo agora vestia camisa branca, marcada dos beijos de Wanda no colarinho. Perfumaram-se e dançaram tango. Wanda tinha uma escova de cabelo na boca, que fazia as vezes da rosa. E riam, riam alto. Tão alto que as crianças bateram na porta, bem no momento em que faziam amor. Ela vestida de columbina do carnaval passado e ele com seu terno xadrez.