21 de nov. de 2008

Orientação

Mãe e Adolfo
-Você não está lendo as placas, Adolfo. Vamos nos perder de novo. (rudemente)
-Mãe, eu li. Virei à esquerda e a quarta à direita depois do manicômio. Vai dar tudo certo, calma. (paciente)
-Eu não lembro de manicômio nenhum, eu lembro de ter visto aquele posto ali já, tá vendo?(agitada)
-Você viu outro posto no quarteirão lá atrás, tem um em cada canto igual, mãe. Agora me deixa dirigir. (paciente)
-Estamos dando voltas nesse fim de mundo. (resmungando)
-Vamos chegar à tempo, mãe. Calma. (paciente)
-Pare ali naquele ponto de taxi que quero me informar, os taxistas conhecem caminhos melhor do que ninguém.(agitada)
-Mãe, eu já sei como chegar! (irritado)
-Mas eu insisto, Adolfo, você pare este carro ali que eu quero perguntar! (gritando)

Mãe e o Taxista
-Moço!! (berrando para fora da janela em direção a um senhor de uns sessenta anos).
-Pois não, senhora. (apressado)
-Como eu chego na Rua Cavanhandava? (sem fôlego)
-Ih, minha senhora, tá longe...e eu tenho uma corrida agora...(virando o rosto e levantando os ombros)
-Você não pode me ajudar? Tem alguém aí que sabe? (olhando para os lados e procurando alguém)
-Cavanhandava tá lá atrás... (apontando pro outro lado da rua e fazendo um círculo com o dedo indicador)

Mãe
-Eu não disse, Adolfo, você podia ter olhado no mapa! Você sabia do compromisso há uma semana! Por que não olhou? Vamos atrasar!
(Adolfo ouve e vira os olhos)

Mãe e o Taxista
-Ô moço, psiu! Ô, me ajuda aqui moço! (gritando e agitando o braço direito para chamar o taxista)
-Como eu faço pra ir pra essa rua pelo amor de Deus que a gente vai perder o compromisso!(gritando impaciente)


Taxista
-Espera só um minuto, senhora. Olha, ali na frente, você faz o retorno e volta nesse sentido mesmo e segue, vai ter um posto e andando mais um pouco tem um manicômio, ali, hospital de doido, sabe? Aí não é a primeira, nem a segunda, deixa eu ver...Na quarta rua a senhora vira à direita e é já a Cavanhandava, to olhando aqui no GPS. (rapidamente)


Mãe e Adolfo
-Manicômio, eu não vi nenhum manicômio! (espantada)
-Mãe, eu te falei do manicômio lá atrás, lembra? (paciente)
-Eu não lembro de nada desse tipo, nem sabia que ainda existiam esses lugares. Pra mim os doidos todos foram soltos e estão vivendo entre a gente. Todo mundo é doido hoje...(reflexiva)
-Agora vamos, Adolfo, o GPS falou que tem manicômio então vamos achar! (determinada)
-Vou fazer o retorno ali, mãe. (cansado)

-Falando nisso, o que é o GPS? (curiosa)
-É um computadorzinho que colocam no carro e ele vai falando os caminhos por onde ir...(explicando pausadamente)
-Nossa, e dá sempre certo? (espantada)
-Dizem que sim...É tudo via satélite. (casualmente)
-Olha lá, aquele prédio azul ali, tá ali o manicômio! Conta até quatro, Adolfo, tamos chegando! (empolgada)

17 de nov. de 2008

Luiz

Luiz é um talento como nunca vi igual na vida. Ele consegue desenhar pontes, fazer modelos de aeronaves, criar formas aerodinâmicas com maestria com o conforto de quem faz isso há décadas, mesmo tendo somente vinte e nove anos e consegue principalmente dormir tranquilo, por volta de sete horas por noite e acordar todos os dias às sete horas para o trabalho, sem um minuto de atraso sequer.
É um homem direito, de caráter. Ele acredita que as verdades podem ser ditas mesmo que você esconda certas partes delas para não ferir as pessoas queridas. Ele pensa que com jeito tudo se faz e a qualquer um se convence.
Não direi o que eu penso sobre isso, pois a mim não cabe julgar se a verdade ideal é sempre a integral. Eu só acredito em fazer as coisas doerem menos.
Esperto também, o Luiz sabe dizer as coisas, modula seu tom de voz para cada ocasião. Já cheguei a conviver com gente que não sabia falar baixo, por exemplo. E também com gente que parece que resmunga o tempo todo que está falando.
Ele escolhe as palavras e vai seguindo sempre a linha de raciocínio do interlocutor, colocando sua opiniões sempre de forma a não contrariar ou irritar. Quer ser sempre bem visto, mesmo que todo o seu brilhantismo esteja na arte de se moldar à vida.
Ele disse que já trabalhou no Mc Donalds outro dia, disse também que trabalhou num sebo de discos usados e num supermercado quando veio de Goiânia para São Paulo, aos 16 anos.
Eu olho pra ele e fico sorrindo só, mentalizando o que ele vai fazer em seguida. Eu me divirto com as frases feitas e com a singeleza dos comentários que ele faz quando descobre algo novo. Ele tem alguma coisa de criança, de homem, de super-herói e de gente no geral que me faz feliz de ver.
Me faz feliz de ver, tenho gosto. Tenho gosto de ver gente ultimamente. Tenho gosto em vê-lo telefonar para a mãe em Goiânia e dizer que a ama no meio da semana, assim, sem ocasião nenhuma.
Luiz tem um talento incomum, difícil de ver hoje em dia.

11 de nov. de 2008

Satisfação

Letrificar : a palavra que eu designei em meu cérebro para definir o ato contínuo de romancear o cotidiano.
Parece meio bobo imaginar que alguém vê o mundo como se estivesse lendo um livro e as situações se tornassem sólidas perante os olhos a cada página.
"O movimento dos cabelos da moça ao sair do ônibus disse ao mundo: estou segura".
"Eu mal sei o nome da atendente, mas ela sempre me sorri como se quisesse me dizer algo mais..."
"O café como sempre, lotado de sorrisos aliviados."
Eu penso no que as pessoas estão pensando quando fazem as coisas. Estão pensando em agir, em atuar ou simplesmente não pensam.
Acho que só fazem. Eu, por exemplo, só vou fazendo mas no fundo eu sei que estou contida dentro de um universo que eu mesmo estou narrando. É incrível, não? E ao mesmo tempo, enlouquecedor porque as letras vão saindo de meus poros e minha cabeça fica mais ágil do que meus dedos. Aí eu respiro fundo, escrevo notas em meus comprovantes de débito bancário ou notas fiscais. Notas sobre o que for, não as mesmas notas que eu criei pros personagens da rua, mentalmente.
Não parece interessante, parece...Como dizer...Masturbatório? Não no sentido sexual.
É realmente a primeira coisa real que escrevo e vou falar sobre masturbação? É. É essencialmente uma coisa que é feita continuamente na intenção de obter satisfação, não? Então é masturbação.
Imaginar as ruas e as salas por onde entro e saio diariamente como se fossem cenas de peças de teatro ou ambientações para uma história a ser contada continuamente e cruzadamente a fim de produzir algo sólido que demonstre minha satisfação não parece semelhante? Sim.
Letrifiquei um sentimento ou ação praticada somente em meu universo aqui. Provavelmente um dia escreverei algo sobre um dicionário de expressões criadas e na letra M, as pessoas encontrariam a palavra "masturbação" com a seguinte descrição: "gesto contínuo, initerrupto e cansativo de se obter satisfação (sobre o que for que estiver em questão) seguido de alívio físico. "

4 de nov. de 2008

Joana e a ararinha

Entardece mais um dia. Joana na vila sozinha olha. Olha por recortes de cortina os reflexos do sol moribundo.
As pessoas por aí, tão preocupadas com nada. Joana queria e não queria sentir. Seu peito inflava desespero e desinflava solidão.
Um ruído visitou sua esquecida janela, um gralhar alto que perturbou seu ouvido. Viu brotar da eira do telhado a cabeça de um pássaro curioso, verde vivo com seu bico virado pra baixo.
Ela assobiou para ele e ele respondeu "uh-uh" . Ela o chamou de louro e ele de novo grasnou. As asas da ararinha não eram cortadas, devia ser uma selvagem perdida na cidade e curiosa por telhados de barro.
As cores da ararinha contra o sol eram mais brilhantes e sua silhueta barulhenta a fascinava.
Joana pensou que assim que o sol se fosse, junto iria a ararinha. E seu momento de cor se esvairia com a noite. Pensou em raptar o pássaro e guardá-lo para si, assim poderia trocar grasnados a todo o momento com o adorável ser.
Mesmo assim, não teve coragem de se aproximar da ararinha. Ficou ali, estática, até os últimos raios de sol, até onde conseguiu ver o verde das penas.