25 de jul. de 2009

Fragmento do dia de hoje

Morte é no tom certo, balbucio.
Não contenho as vírgulas e pausas. Assim, corro flutuante como um pedaço de madeira neste mar de drama.
Dentro e fora, sou nada.
E o tudo é tão vazio que posso gritá-lo e ouvir seus ecos dez anos depois.
Assim, manchas nas mãos ou dobras nos cantos dos olhos vão contando pro lado de fora sobre mim pra quem vier.
Não importa.
Parece que nasci ontem.

4 de jul. de 2009

Grávida

A gravidez. Depois, a fila de carrinhos lotados esperando passar um por um dos produtos no leitor de códigos de barras para somar na conta de cada um.
O turno já começou com uma confusão entre dois travestis que compravam absorvente interno e lâminas de barbear. Eu dei risada quando um deles disse que o outro não era mulher o suficiente pra bater nele. Eu não sei, eu não consigo chamar travestis de "ela", falando sério.
A gravidez. Cinco meses hoje. Senti o pequeno mexer, achei que eram gases. Depois lembrei que tinha algo dentro de mim.
A barriga está começando a me afastar da registradora e eu tenho que esticar mais os braços pra poder registrar. Os clientes perguntam (os que me olham) se estou grávida. Alguns ainda não falam nada porque a barriga não cresceu o suficiente pra deixar de parecer excesso de cerveja. Ah, a cerveja...Sinto uma falta enorme dela. Sinto falta de tomar porres também e chegar em casa doidona de pinga depois de cantar todas no videokê. Era legal isso. E agora com certeza pega mal mesmo levar criança pro boteco. Eu mesma critiquei a Shirlei por levar a Daiana com 8 meses pros botecos cheios de bêbados. A Shirlei continuou enchendo a cara e dando de mamar com o copo de cerveja na mão. Que coisa feia isso.
Eu acho que quando isso passar eu não vou mais sentir vontade de sair. Vou ficar quietinha em casa e um dia um cliente daqui vai me ver (sem barriga) e vamos começar um namoro legal, decente, de família. Talvez.
Mais um, passou o cartão. Não autorizou, chegou a supervisora patinando. Vou tentar patinar grávida. Eu achava legal patinar no Golden Shopping quando tinha patins, depois eu vendi o meu pra ajudar meu pai a comprar um videogame. Acho que o bebê pode se machucar. Passou agora.
O bebê mexeu enquanto passava o condicionador na leitora, quase dez reais esse condicionador. Quase dá pra comprar mais um pacote de fraldas...Fraldas, é só no que penso. Como se troca uma fralda? Eu tenho medo de fazer errado. Disseram pra eu ficar tranquila. Eu não estou tranquila. Estou com fome.
Guardei meu Clube Social embaixo das sacolinhas pra patinadora não ver que eu preciso comer de cinco em cinco minutos ou o bebê vai começar dar chutinhos com sua microperna nos meus órgãos internos. Eu estou passando comida por essa esteira o dia inteiro e tenho vontade de rasgar essas embalagens e comer tudo na frente do cliente mas não dá, claro. No curso de treinamento eles disseram pra gente pensar em cada item como somente um objeto e não algo que você queira ou precise, mas ninguém precisava me dizer que isso é bem torturante. Eu tenho um brioche brilhando com seu creminho na minha frente e embaixo das sacolinhas aquela bolachinha sem vergonha que eu tenho que esconder de todo mundo. Senti um microchute.
Faltam ainda dois carrinhos, com certeza aquela senhorinha ali vai perguntar de quantos meses eu estou e eu vou ter que sorrir pra ela. Tem cinco coisas no carrinho, por que pegou não pegou o caixa rápido? Com certeza ela pensou: "melhor aquele ali da moça grávida".
Pelo menos eu sou registrada, tenho licença maternidade e vou poder aprender a cuidar do nenê enquanto não volto pra cá. Também posso fazer meus exames pelo plano de saúde e os estoquistas pararam de me paquerar. Já estava ficando chato mas até que sinto falta.
Eu acho que não sinto falta de nada, acho que isso tinha que acontecer pra eu tomar juízo e acordar pra vida. Nada é por acaso. Eu precisava mesmo largar as noitadas e parar de torrar meu salário com pinga.
Sempre quis ser mãe, estou realizada. Mal posso esperar pra ver a carinha do menino quando ele nascer. Meu menino. Hoje vou ver roupinhas pra ele e assistir tevê tomando um chá bem quentinho. Vou curtir minha barriguinha. Não vou ligar de volta para a Shirlei. Com certeza ela vai me chamar pra ir no forró e dizer pra eu pôr blusa larga que ainda não aparece nada. Mas ela não liga de deixar a Daiane com a sogra louca dela, eu ligo. Ela diz que eu tenho que aproveitar enquanto ainda dá. Eu não acho que tenho que ir lá. Vou ver um monte de caras que eu já paquerei, já saí. É bem estranho isso. É bem estranho também o pessoal do trabalho me perguntar de quem é o bebê mesmo sabendo de quem é. Eu finjo que não é comigo mas fico com raiva. Na verdade a raiva é da fofoca, sabe. Detesto a fofoca.
É, vou ficar em casa e tentar fazer tricô de novo. É sábado, só tem doido na rua, tô fora.