28 de ago. de 2008

Fragmentos do dia de hoje

A circunferência do crânio enorme eclipsava a luz do sol.
Estava sentada na calçada à toa, pensando em alguma coisa...Então, eis que a
enorme caixa craniana fez sua sombra sobre mim.
Sua portadora despejava palavras que me trespassavam e
batiam no cimento. Eu não compreendia quantas ela dizia por segundo. Eu tentei
contar, mas de repente a minha cabeça ficou cheia, cheinha delas, aquelas
palavras.
Eu já não mais conseguia ver o sol. Era um eclipse
total.
Fiz um círculo dentro da folha de papel, não queria nada mais redondo. Só
queria caber dentro dele. Queria circular.

Não consegui disfarçar hoje a vírgula que brota aqui. É um grande porém que
se embriona no centro das idéias. Mostrei a marca no rosto, embandeirada.

As pálpebras se estiram para cima enfim.

22 de ago. de 2008

Missivas da Paixão

Cara Suzana,
Por motivo de ausência de fundos em minha conta bancária, estou deixando anexada ao bilhete a última conta de telefone da casa, já que são de seu conhecimento a maioria de números de celular para onde foram efetuadas chamadas desta linha telefônica.
Acho apropriado que você pague por suas tardes de maledicência ao telefone com suas amigas da Igreja pelo menos em dinheiro, porque com certeza Jesus está ciente de tudo o que você anda falando por aí.
Caro Luís Roberto,
Venho meio desta lembrá-lo de que a ausência de fundos na conta bancária que você clama como sua, mas é conjunta é de sua inteira responsabilidade.
Eu não fui consultada em nenhum momento sobre gastos com iluminação automotiva para nosso carro e em momento algum me agradaram as luzes neon verde que foram instaladas embaixo de nosso Volkwagen mas mantive minha postura discreta pois não quis entrar no âmbito da crítica ao vosso gosto.
Cara Suzana,
Notei a presença de comportamento dúbio de sua parte, afinal, a mim foi dito que te agradou a nova decoração de nosso carro.
Cheguei a ouvir até que as luzes ornavam com seus sapatos, brincos e acessórios.
Esse tipo de atitude me faz duvidar de todo o restante de afirmações feitas pela sua pessoa já que sempre defendi a honestidade e a retidão de caráter.
Duvido inclusive de que aqueles seiscentos reais gastos no estabelecimento chamado "Delícias do Paraíso", segundo consta no extrato de seu cartão de crédito, não foram gastos em nenhum spa de beleza, segundo a Senhora declarou.
Caro Luís Roberto,
Acaso ousa afirmar que eu faltei com a verdade?
Como direito de resposta, defendo minha honra com esta nota.
Em anexo se encontra o folheto informativo do Spa Delícias do Paraíso com endereço e divulgação de serviços. O Senhor pode por ventura, entrar em contato com o estabelecimento para confirmar minha presença na data do débito no cartão, nada tenho a esconder.
Para sanar dúvidas definitivamente, declaro honestamente que considero a iluminação do Volkswagen de muito mal gosto e que eu não aprecio ir à igreja aos sábados dentro de um veículo que se assemelha a um letreiro de motel.
Cara Suzana,
Ainda insisto no fato da Senhora ter extrapolado nos valores da conta telefônica trocando receitas com as amigas da Igreja.
Na atual conjuntura do mundo, esse é um luxo que não podemos nos dar. Assim como eu revejo a iluminação que instalei no Volkswagen e estou pensando com seriedade em ter somente um backlight numa cor mais neutra, como gesto de humildade.
Penso que podemos evitar o excesso de consumismo e dedicar mais do nosso tempo aos hábitos saudáveis. Sinto que você seria mais feliz e menos pobre se ficasse mais tempo em silêncio, meditando. É minha opinião sincera e honesta.
(Esta última missiva retornou rasgada no chão da cozinha)

14 de ago. de 2008

Queixa sem gosto

O almoço parece diariamente me incomodar. Até porque quando se come só e com a cabeça solta no espaço dos últimos acontecimentos e a vista presa à imagens ao redor, a comida que escolhi para o prato parece não ter nenhum significado.
Eu não gosto do restaurante, as paredes verdes de um verde falso e indigesto me incomodam. A luz fria, indiferente que dá um ar de cozinha caseira não incentiva os alimentos a mostrarem suas cores, apesar de eu saber que é a luz mais indicada para isso.
O cozinheiro parece detestar o que faz, repõe o feijão despejando-o de uma altura que faz o caldo espirrar para os lados e sujar os outros pratos.
O churrasqueiro passeia pelo restaurante cumprimentando as pessoas com seu avental manchado de sangue, suor e sal grosso.
Eu realmente detesto este lugar, mas é o que posso pagar no momento. Gasto em torno de sete reais para almoçar e a comida não é ruim, ela apenas é comida.
Contemplo a tevê ligada no programa mais infame do horário e observo as pessoas, as mesmas do dia de antes. A mesma cenoura avermelhada e o vinagrete com repolho roxo que eu nunca tinha visto. O azeite de uma marca anônima apenas besunta as folhas do agrião, eu como folhas engorduradas.
Me trazem o suco, de laranja ou maracujá, que salva minha refeição. Ele custa dois e cinquenta e representa a parte prazerosa do momento que dura exatamente vinte minutos.
Penduro a conta e toma a última gota do suquinho. Atravesso a rua pra tomar o café de graça no trabalho.
Imagino o dia em que terei que pagar aquela conta. Será amargo, acho. Até porque faz 1 mês que almoço sem pagar, não acho digno pagar por isso. Enfim, alguém precisa ser pago pelo trabalho de fritar uma tonelada de bananas empanadas diariamente, tarefa ingrata e gordurosa. Pagarei com desgosto porque o desgosto é justo por comer sem gosto.