19 de mai. de 2008

Enterrando o Tio Betinho - Parte Um

O Tio Betinho era um cara de bem. Eu pelo menos sempre tive essa impressão. Ele era quase a réplica visual de meu avô, seu irmão mais velho. Com um pouco de cabelo a mais, quem sabe.

O nome não derivava de Alberto ou Roberto. Na verdade, seu nome de batismo era Asclepíades. A própria mãe, Dona Chica, uma espanhola que se gabava de seu buço original europeu, achou melhor que o menino fosse chamado por Betinho, o que melhorou seu relacionamento social e familiar.

Não convém aventar qual a origem de seu nome original, é um mistério na família. Mas a mim interessa buscar alguma fonte que me explique o que se passou pela mente de meu bisavô quando consumou o registro do Tio Betinho no cartório.

Nós nunca fomos íntimos e eu nunca soube muito da vida do Tio Betinho, era meu tio-avô, aquele parente que você encontra em casamentos, bodas de ouro e missas de sétimo dia. Era um piadista, daqueles bem sem graça. Aqueles tios-avós piadistas que adorava carolar na igreja matriz e tomar suas doses cavalares de Fernet nos domingos de tarde, ouvindo jogo de futebol no rádio.

Vez por outra ele dormia, sentado na cadeira. Vez por outra ele saía para passear com o cão, um lingüiça chamado Mussolini, pelo Bairro Assunção.

Era um tio-avô normal, o mais novo, acho. O único irmão vivo de meu avô.

Num desses dias da semana minha mãe veio contar que o Tio Betinho estava internado, tinha tido um infarto.

Meditei sobre a normalidade das coisas: um senhor de setenta anos, o histórico cardíaco da família, o Fernet...

Nada causou muita comoção familiar. É algo que se espera de alguém ao atingir essa faixa etária, uma loteria diária onde se marcam os dias em que não houve surpresas desagradáveis em relação à saúde.

É mórbido falar assim, eu sei. Mas o Tio Betinho era o mais novo. Ele tinha setenta anos...Enfim, um infarto é algo corriqueiro. Haveria de ser somente um susto. Pra dar uma levantada na vida e deixar que um dia, ele estivesse sentado em sua cadeira ouvindo o jogo e seu coração simplesmente parasse de bater, porque a garantia acabou.

Não foi. O hospital o reteve por duas semanas. E no dia em que o coração do Tio Betinho deu sinais de recuperação, ele teve alta.

Dois dias se passaram e no fim do segundo dia, ele teve um derrame cerebral que o atingiu como um raio, levando-o de vez.

Assim se foi o Tio Betinho, sem mala e sem cuia e sem seu Fernet, pendurar suas chuteiras. Uma morte que não surpreendeu a ninguém mas que ninguém esperava.

Enterrando o Tio Betinho - Parte Dois

Meu avô, o irmão mais velho, não se ocupou das funções funerárias. Deixou a cargo da prole (que eu desconheço), o desempenho desse papel.

Não fui vê-lo, mas soube que meus tios (num grande gesto sensível e consolador), trataram de beber o finado.

Meu avô não bebeu, mas tentou sorrir e ver tudo com naturalidade, já que a morte é a certeza mais explícita da vida. Eu via os olhinhos dele atrás dos óculos enormes, por vezes com brilho de emoção.

A verdade é que o conjunto familiar tentou fazê-lo não pensar com todo o seu dom italiano de falar e rir e beber e falar, tudo ao mesmo tempo. Mas os espanhóis choram. E riem também e bebem Fernet nos domingos de tarde.

O velório se deu no Cemitério da Boa Viagem, também no Bairro Assunção. Me questiono o nome “boa viagem”. Presumo que este termo seja aplicado a uma viagem bem-sucedida, sem assaltos, pneus furados, sem extravio de bagagem e sem chuva no Nordeste.

Ultima viagem, seria o termo, por mais tétrico que isso possa soar é perfeitamente aplicável. O teto de madeira abafando o rosto daquele corpo e o carrinho transportando o leito até a última morada poderia ser considerado como a última jornada, se o Tio Betinho estivesse conscientemente participando disso e comentando em forma de piada infame. Mas era a sua boa viagem.

Chovia sem parar, mais um clichê para um velório seguido de enterro. Outra do Tio Betinho. O teto do velório vazava goteiras sobre os participantes. Minhas tias comentavam distantes, distantes demais de todo o contexto. Olhei pro Tio Betinho ali, de longe. Meu avô, ao lado, ouvindo as palavras do ministro que alongou demais no discurso sobre a vida e a morte. Minha avó, comentando sua última passagem pelo clínico.

E todos ali, numa montoeira dispersa, desinteressados na última infâmia do Tio Betinho, ser enterrado num domingo de chuva.

Encerrado o protocolo de despacho do homem, segue o cortejo para o Boa Viagem. O Jazigo era logo na primeira rua, tradicional de família co-fundadora da cidade.

Três profissionais de enterro de cadáveres foram acionados e após a última flor que foi jogada no caixão, seguraram as alças e introduziram a urna pela abertura do jazigo.

Logo naquela chuva, constatou-se que o caixão era largo demais para passar por lá, depois de umas três tentativas.

Como ninguém pensou nisso? Como antigamente as pessoas eram satisfeitas com caixões menores?

O Tio Betinho estava alojado em um caixão modelo Classic, com alças de cromo e latão, uma fortuna parcelada em algumas (muitas) vezes. Mas que valeu a pena.

Um dos coveiros girou o sarcófago a 30 graus, pensando que de lado, haveria de entrar.

Os homens estavam ensopados, a família aflita, os convidados então (os mesmos que beberam o finado) sorriram discretamente com o embaraço geral.

Eu imaginei o Tio Betinho sacolejando inerte naquele paletó de madeira. Senti até um enjoozinho. Tentaram de tudo, girar, inclinar...O Tio Betinho devia estar desesperado e ao mesmo tempo rindo do chiste que aplicou na família toda.

Um dos coveiros diz: “E se tirarmos a tampa?” e o outro retruca: “Não, aí o cara vai cair”.

O mesmo torna com outra idéia: “Vamo tirá as alça”.

Alguém da família diz: “Nãaaao”.

Com sabedoria, o último sai de cena e volta novamente com uma marreta e uma talhadeira dizendo: “Vamo quebrá issae”.

E com a anuência da nauseada família do falecido, executaram a obra e deixaram finalmente que o Tio Betinho descansasse em (quase) paz.