19 de mai. de 2008

Enterrando o Tio Betinho - Parte Dois

Meu avô, o irmão mais velho, não se ocupou das funções funerárias. Deixou a cargo da prole (que eu desconheço), o desempenho desse papel.

Não fui vê-lo, mas soube que meus tios (num grande gesto sensível e consolador), trataram de beber o finado.

Meu avô não bebeu, mas tentou sorrir e ver tudo com naturalidade, já que a morte é a certeza mais explícita da vida. Eu via os olhinhos dele atrás dos óculos enormes, por vezes com brilho de emoção.

A verdade é que o conjunto familiar tentou fazê-lo não pensar com todo o seu dom italiano de falar e rir e beber e falar, tudo ao mesmo tempo. Mas os espanhóis choram. E riem também e bebem Fernet nos domingos de tarde.

O velório se deu no Cemitério da Boa Viagem, também no Bairro Assunção. Me questiono o nome “boa viagem”. Presumo que este termo seja aplicado a uma viagem bem-sucedida, sem assaltos, pneus furados, sem extravio de bagagem e sem chuva no Nordeste.

Ultima viagem, seria o termo, por mais tétrico que isso possa soar é perfeitamente aplicável. O teto de madeira abafando o rosto daquele corpo e o carrinho transportando o leito até a última morada poderia ser considerado como a última jornada, se o Tio Betinho estivesse conscientemente participando disso e comentando em forma de piada infame. Mas era a sua boa viagem.

Chovia sem parar, mais um clichê para um velório seguido de enterro. Outra do Tio Betinho. O teto do velório vazava goteiras sobre os participantes. Minhas tias comentavam distantes, distantes demais de todo o contexto. Olhei pro Tio Betinho ali, de longe. Meu avô, ao lado, ouvindo as palavras do ministro que alongou demais no discurso sobre a vida e a morte. Minha avó, comentando sua última passagem pelo clínico.

E todos ali, numa montoeira dispersa, desinteressados na última infâmia do Tio Betinho, ser enterrado num domingo de chuva.

Encerrado o protocolo de despacho do homem, segue o cortejo para o Boa Viagem. O Jazigo era logo na primeira rua, tradicional de família co-fundadora da cidade.

Três profissionais de enterro de cadáveres foram acionados e após a última flor que foi jogada no caixão, seguraram as alças e introduziram a urna pela abertura do jazigo.

Logo naquela chuva, constatou-se que o caixão era largo demais para passar por lá, depois de umas três tentativas.

Como ninguém pensou nisso? Como antigamente as pessoas eram satisfeitas com caixões menores?

O Tio Betinho estava alojado em um caixão modelo Classic, com alças de cromo e latão, uma fortuna parcelada em algumas (muitas) vezes. Mas que valeu a pena.

Um dos coveiros girou o sarcófago a 30 graus, pensando que de lado, haveria de entrar.

Os homens estavam ensopados, a família aflita, os convidados então (os mesmos que beberam o finado) sorriram discretamente com o embaraço geral.

Eu imaginei o Tio Betinho sacolejando inerte naquele paletó de madeira. Senti até um enjoozinho. Tentaram de tudo, girar, inclinar...O Tio Betinho devia estar desesperado e ao mesmo tempo rindo do chiste que aplicou na família toda.

Um dos coveiros diz: “E se tirarmos a tampa?” e o outro retruca: “Não, aí o cara vai cair”.

O mesmo torna com outra idéia: “Vamo tirá as alça”.

Alguém da família diz: “Nãaaao”.

Com sabedoria, o último sai de cena e volta novamente com uma marreta e uma talhadeira dizendo: “Vamo quebrá issae”.

E com a anuência da nauseada família do falecido, executaram a obra e deixaram finalmente que o Tio Betinho descansasse em (quase) paz.

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