19 de dez. de 2007

À Espera

Estou intranquila. Mexeram-me de novo, esse balanço me enjoa as vezes.
Não é só a sensação de desconforto apertando a garganta ou a insensibilidade dos meus pés adormecidos.
Hoje chutei duas vezes quando o som estava alto demais e uma vez quando tocou a campainha.
Me bateu um nervoso, uma vontade de tremer. Essa expectativa está acabando comigo.
Quando será a hora? Será que eu não vejo a hora? Será que vou sair daqui um dia?
Não vejo luz há meses...
Primeiro a promessa de que tudo correria bem e a proteção que me ofereceram pareceram tentadores. Não pude recusar. Aceitei e hoje não consigo controlar minha ansiedade. Eu não gosto de condições mas, não posso deixar que elas rodeiem meus pensamentos se infiltrando em todas as possibilidades.
Eu só ouço pessoas passando, eu só escuto os passos e confesso que quando não ouço nada, ouço mais o medo batendo no meu peito e tirando minha respiração. Eu quero tremer. Eu ouço vozes abafadas e o calor. Esse calor intenso que vem em ondas e parece vir de fora pra dentro.
Não dá para gritar, essas paredes absorvem minha voz.
Eu posso contar, dormir e criar histórias para viver depois que sair daqui e é só. Eu só posso esperar para viver.

12 de dez. de 2007

Mufa

É, todo dia parece tranquilo. A verdade é que no ócio, as coisas imperceptíveis ficam evidentes.
Num dia qualquer você começa a pensar em coisas improváveis e sem embasamento científico. Uma delas seria a hereditariedade do azar.
Eu vi isso num filme argentino outro dia: um rapaz que era a personificação do azar, coitado. Ele conseguiu perder o emprego, ser assaltado e ainda um carro entrou em sua sala de estar no mesmo dia. Existe uma gíria para isso na Argentina: Mufa.

Se eu estivesse muito ocupada talvez não teria oportunidade de considerar que isso pudesse acontecer com alguém de fato até que uma sucessão de curiosidades acontecesse num dia só, diante dos meus olhos.
Certo dia, chego ao escritório e noto que as tralhas que acumulavam escorpiões, esquilos e aranhas armadeiras haviam sido derrubadas pela chuva do dia anterior e estavam espalhadas pelo quintal. Latas de tinta, aguarrás, conduítes e spots de lâmpadas rolaram até o portão.
Eu não teria rido por esse fato se elas não tivesse sido arrumadas no dia anterior pela faxineira que bateu no peito com orgulho dizendo que fez tudo sozinha.
Controlei o espírito de porco e dissimulei um desapontamento solidário.
Ansiosa pra tomar um café, vou até a cozinha e vejo o sócio preparando o seu na cafeteira elétrica. Ele ficou feliz por que tinha chegado primeiro e teve oportunidade de me servir alguma vez na vida.
A felicidade durou 5 minutos. A cafeteira elétrica entupiu e a mistura de pó e água começou a transbordar, sujando o plástico branco (que era pra ser preto, segundo a compra pela internet). O sócio se desesperou, ligou a torneira e enfiou a cafeteira ligada embaixo da água. Eu gritei e avancei no botão para desligar antes que o pior acontecesse.
Ele derrumou café na mão, deu um grito e soltou a jarra de vidro. Consegui segurá-la, mas o café caiu direto no piso branquinho. Ele pegou o filtro cheio de pó molhado e jogou no lixo que estava com a tampa fechada. Espirrou tudo na geladeira.
Depois do episódio em que o sócio desistiu de me servir café e eu acabei me conformando em ir pra cozinha de novo, sentei no posto de trabalho e fiquei rindo discretamente da situação.
Duas horas depois, ele saiu atrasado prum compromisso. Chovia forte aqui e estava um vento frio. Ele se despediu e saiu falando no celular.
Dez minutos depois, a porta se abre e o sócio entra, molhado da cabeça aos pés me dizendo:
-Meu carro quebrou, o que faço?
-Como quebrou?
-Não sei, eu virei o volante, ouvi um click e ele quebrou. Acho que foi o eixo.
-Meu Deus, como você conseguiu? Deixa eu ver.
O carro estava atravessado no meio da rua e uma fila de carros já se formava atrás dele. Eu já podia ouvir as buzinas e os xingamentos.
-Vamos chamar um guincho.
-Onde tem guincho?
-Na lista telefônica...
-Liga lá pra mim. Melhor, vou ligar pro meu mecânico.
Agora estávamos os dois molhados e ligando pro mecânico. O mecânico disse que tinha um guincho de confiança e que o mandaria em 30 minutos.
Eu voltei pro meu posto de trabalho e uma hora depois, o guincho chegou.
O sócio fez um gesto que dizia para eu ir olhar.
Era uma Kombi daquelas que usam pra fazer carreto, com um motorista centenário que segurava uma cordinha.
Eu mais uma vez segurei o riso e me concentrei na arrumação das latas de tinta e dos conduítes molhados do quintal.
Sentimos um cheiro de fumaça intenso no quintal e fui averiguar o que acontecia.
O sócio me puxou de canto e disse:
-O guincho quebrou.
-Ah é? Mas olha esse carro! E agora?
Os carros se amontoavam para passar pela única pista a que ficou resumida a rua. Eu conseguia ver que ele estava desesperado. Mas mesmo assim, uma única palavra me veio à cabeça: Mufa.
O sócio é argentino, não podia ser diferente.

7 de dez. de 2007

O vazio

Para Cláudio


Deveria ser o olhar dela. Com algo de gélido, cansado. Me assustei, desviei o olhar para o tráfego da Avenida. Contei as ambulâncias que passaram, eu me retirei dali...Acho que queria outro mundo.
As crianças estavam fora. Um no inglês, o outro na natação. Mais um motivo para divagar na janela.
Ela me perguntou o que eu fazia, pra onde e pra quem olhava tanto. Eu não soube o que dizer porque acho que se dissesse "para o vazio", seria mal interpretado.
Ela pegou todos os cadernos e livros que estavam na mesa e saiu batendo a porta, com cara de brava.
Eu a vi descer até o portão, esperar o sinal de pedestres abrir, atravessar a rua e sumir atrás de um ônibus no cinza do dia. Eu esperei minha vida inteira para notar a cor do dia, mas nada fiz. Só fiquei ali, embaçando a vidraça com o meu hálito e olhando o vazio.

6 de dez. de 2007

Não subestime baratas

Havia uma montoeira de tábuas de madeira, móveis destruídos pela ação do tempo e da chuva, rolos de papelão, cadeiras quebradas e toda a espécie de entulho possível no quintal.
Os donos da casa não tomavam providências porque simplesmente não tinham tempo ou estavam ocupados demais discutindo a relação que estava prestes a ruir.
Que importava aquele lixo todo perto de uma vida conjunta que acabaria a qualquer toalha molhada que o rapaz deixasse sobre a cama? Tanto fazia.
Era assim que pensavam as baratas que habitavam o cantinho escuro e abafado daquele nicho de madeira branco, logo à esquerda do botijão de gás.
Elas iam e vinham atraídas pelo cheiro de café adoçado que tomava conta da casa duas vezes por dia. Elas se concentravam e se organizavam para agir justamente quando a movimentação da casa aumentasse e os berros da moça dispersassem qualquer atenção que poderia denunciar a presença delas.
Esses tais insetos não gostavam de lixo, nem de esgoto. Gostavam de calor, açúcar e gostavam principalmente dos restinhos de comida que o rapaz deixava cair no carpete quando comia na sala. Viviam em êxtase quando ele esquecia suas toalhas amontoadas na área de serviço, aquele monte de panos úmidos e com cheirinho de mofo todo especial.
Elas festejavam quando a moça inventava de cozinhar para o moço. Ele não comia quase nada e o lixo do dia ficava todo requintado.
Elas vibraram quando a moça dispensou a faxineira porque desconfiou que o moço arrastava uma asa para ela. Ficaram 3 meses livres dos apuros, das vassouradas, chineladas e veneno.
A vida era feliz na família de baratas que crescia mais a cada dia. Claro que elas sabiam que não duraria pra sempre, pois baratas não são bem vindas na sociedade dos humanos, são hostilizadas por denotarem abandono e sujeira.
Com esta consciência, viviam preparadas para situações perigosas, desenvolveram técnicas de fuga e tomaram lições de teatro com uma barata que havia morado na cozinha do Teatro Municipal por 3 anos e tinha muita experiência nisso. Estavam preparadas para tudo que viesse.
E assim, anos de paz naquele cantinho estariam para terminar naquele dia que um caminhão baú estacionou na frente da garagem.

Uma movimentação estranha tomou conta da casa e homens vestidos de laranja começaram a levar os móveis, aparelhos e pertences em caixas, para dentro do enorme baú.
O alarme de perigo havia sido dado um mês atrás quando uma companheira notou que a moça não fazia mais o café e eles pouco ficavam na casa.
As baratas entenderam que aquele podia ser o fim de tudo e antes que o pânico se instalasse na colônia, resolveram acalmar os ânimos e traçar um plano.

O dia correu tranquilo e o trânsito dos homens-laranja (como foram apelidados na colônia) parou no início da noite.
As baratas preferiram descansar e se alimentaram das últimas provisões que encontraram na casa. Era uma época difícil aquela.
Mal amanheceu e aqueles homens voltaram a trabalhar na casa. Levaram os utensílios da cozinha e os sofás da sala dessa vez. Pararam pra almoçar e descansaram deitados no quintal. A moça não apareceu em casa naquele dia.
Depois do almoço, cinco laranjas se aproximaram do entulho no fundo do quintal e começaram a retirar tábua por tábua e a jogar o que não prestava numa caçamba que a moça tinha pedido.
As baratas então se prepararam para o pior.
Assim que removeram as tábuas, compensados e caibros, puseram-se a mexer nos móveis destruídos, se aproximando cada vez mais da colônia.
Um dos homens colocou o pé na frente do armário branco onde elas estavam e ouviu-se um grito de guerra. Duas mil, oitocentas e setenta e quatro baratas partiram para cima do pobre funcionário provocando uma reação de asco e espanto. Outras setecentas formaram barricadas à esquerda e à direita do grupo de laranjas e as quinhentas remanescentes cobriram a retaguarda.
O grupo de funcionários da mudança ficou sem ação diante daquela quantidade de baratas que nunca viram ao mesmo tempo e um deles saiu correndo e pisoteando as bravas baratinhas. Baixas eram previsíveis contando com o tamanho dos humanos.
Os que ficaram se perguntaram o que fazer. Um deles sugeriu que fossem embora e voltassem no dia seguinte com um dedetizador.
Depois do levante e do resultado positivo, as baratas comemoraram brevemente a vitória e oraram por seus mortos em combate, traçando estratégia para o dia seguinte.

A manhã chegou e os laranjas voltaram, dessa vez equipados com uniformes de borracha e máscaras cobrindo seus rostos. Estavam armados até os dentes.
Voltaram a desmontar a pilha de móveis que haviam deixado de lado e via-se que sentiam medo de algum tipo de ataque surpresa daqueles seres nojentinhos.
De início, nada encontraram. Um deles descobriu o "estoque" de comida que mantinham embaixo de um taco. Mas nenhuma barata viram.
Outro achou um suposto "banheiro" de barata, mas nada de barata. E assim foi. Acharam todos os tipos de vestígios de que havia ali uma verdadeira metrópole de baratas. Mas tinha sido completamente evacuada da noite para o dia.
"Onde estão as danadinhas?" - disse um laranja para o outro. "Não sei. Será que estão com medo da gente?" - perguntou o outro. "Elas devem ter fugido pelo esgoto durante a noite" - disse o laranja mais gordo e que aparentava ser o líder.
Deram de ombros e decidiram remover os aparatos para extermínio de insetos e continuar o trabalho de carregar o caminhão, aliviados.
Levaram a escada de alumínio, os três varais, os dois botijões de gás, o fogão do quintal, os quinze rolos de papelão e a tábua de passar e o antigo louceiro estilo rústico, os dois gabinetes de banheiro e por fim, o pesado cofre de ferro.
Exaustos, pararam pra tomar um café no boteco na esquina. Um deles comentou que o sumiço das baratas era um mistério e outro retrucou que o problema deveria ser comunicado à nova dona da casa. Chegaram a conclusão de que o melhor seria contar a história para seus filhos omitindo, é claro, a parte em que eram vítimas de um ataque organizado de baratas.
Nenhum deles percebeu que o louceiro rústico de madeira estava mais pesado do que de costume. Eram as quase quatro mil baratas se amontoando nas gavetas, prateleiras e buracos, em silêncio e profundamente ofendidas por terem sido acusadas de fugir pelo esgoto.

28 de nov. de 2007

Algumas Caipirinhas

Outro sábado na fila, só quero ver quem vai aparecer hoje. Vou ficar atrás do pilar.

-Ooooooi, gata! Nem te vi quando passei de carro aqui na frente pra dar uma espiada na fila.

-Você veio com quem?

-Com o Marcinho, a Lia e a Rosana. A gente encontrou o Carlão no posto com a Duda, comprando cigarro. Acho que eles vêm pra cá também hoje.

-Ah, mas eu vou entrar porque já liguei pra Carol e ela já tá lá dentro. Mais uns 20 minutos e a gente vai. Entra aqui na minha frente, passa aí por baixo do cordão...

-Tá, fica na minha frente.

30 minutos depois...

-É R$20,00 de consuma ou R$15,00 de entrada.

-Tudo bem, marca 20 que eu tô a fim de me estragar.

Tunts tunts tunts tunts tunts tunts unts tunts tunts tunts tunts tunts tunts tunts tunts

-Vamos pro bar.

-Ahhh, já? Queria dar uma espiadinha antes.

-Não acredito que você veio aqui pra encontrar aquele cara. Sabia meu, sabia que você tava pescoçando a fila toda procurando ele. Você não aprende não? Parece que gosta de apanhar!

-Meu, calma! Eu não vim pra encontrar ninguém. Eu vim pra dançar e ver vocês. Tava precisando sair um pouco pra desencanar...

-Tá, vou fingir que acredito...Agora vamos pro bar.

-Vamos, que você vai beber?

-Uma tequila e vc?

-Uma cerveja mesmo...

-Ai, não acredito. Cara, olha quem tá ali perto do banheiro.

-Putz, tinha certeza que ele ia estar aqui. Será que ele tá sozinho? Tomara que sim, acho que eu não vou aguentar se ele estiver com alguém...

-Querida, não olha agora mas acho que ele viu você.

-Vou fingir que não vi nada, dissimula, dissimula...

-Ele tá fazendo tchauzinho pra mim, vira aí, cumprimenta ele pelo menos. Mostra que você não tá nem aí...

-Isso, gata...Agora vamos pra pista.

-Não meu, vou tomar uma caipirinha.

-Você comeu antes de vir?

-Comi um pacote de Doritos no carro, só. Mas eu quero beber.

-Oooolha, cuidado hein. Vou esperar sua caipirinha e vamos pra pista.

-Quem é aquela vaca com ele? Por acaso é a Joyce, secretária da escola de inglês dele?

-Não sei, nunca vi aquela menina.

20 minutos depois...

-Garçon, outra de vodka com morango.

-Calma, fia. Você vai ficar mal.

-Dane-se. Agora eu vô bebeeeer meeeesmo. Não devo nada pra ninguém...Vamos no banheiro.

-Vamos, vamos...

No banheiro...

-Cara%*$, Tati. A mina é muito baranga!! Não to acreditando!! Logo ele que dizia que tinha controle de qualidade. Que de quinta! Que fundo de poço! Tô passada...

-Calma, July. Relaxa...Você tem que ser forte, amiga. Esse cara não te merece. Você fez tudo por ele, foi super decente. Que ele te deu em troca? Olha só, não chora não. Você linda, gostosa. Dá de 10 naquela ridícula. Eu sei que hoje você conhece alguém bacana e dá o troco nele. Mostra pra ele que a fila andou. Que você é superior!

-Ah, tô arrasada. Cadê minha caipirinha?

-Você tomou toda. Vou pegar outra lá.

-Ai amiga, só você me entende. Brigado viu. Te adoro.

-Também te adoro, querida. Vamos lá, pára de chorar e bola pra frente.

-Vamos. E seu gatinho não ia te encontrar aqui?

-Ia, aliás, liguei no celular dele e deu caixa.

-Liga de novo. Enquanto isso, vou até o bar pegar outra bebida, quer algo? Espera aí.

20 minutos depois...

-Gataaaaaaaa, acho que hoje eu tô com mel! Na hora em que eu tava no bar, conheci um cara muito gato, perfeito. E o talzinho me viu conversando com ele e fez maior cara feia. Adorei, adorei! O carinha do bar ficou me dando umas entradas e eu ali, toda poderosa! Hahahahahaha!

-Nossa, que tudo! Vamos finalmente curtir a noite!! Vamos lá pro bar e você me apresenta pro tal gatinho. Depois vamos procurar o Henrique.

-Henrique, o carinha que conheci no bar também é Henrique!

-Nossa, é o destino então. Até nisso a gente combina!

Chegando no bar...

-Oi, Henrique!

-Você??? Te procurei a noite toda! Que houve com o celular? Então você deu em cima da minha amiga? Seu cafajeste! Nunca mais quero te ver na vida!

-E você, sua vaca! Dando em cima do meu homem, se achando, rebolando e querendo que todo mundo te olhe. Você é ridícula, vulgarzinha, burra!

-Quer saber, vocês dois se merecem! Dois galinhas! Tô indo embora!

-Calma, Tati. Não aconteceu nada. Você tá louca! Eu apenas conversei com a sua amiga. E eu não sabia que era sua amiga.

-Ahhh, quer dizer que se não fosse minha amiga estava tudo bem?

-Não, não é isso não...Você não entendeu.

-Tati, eu não sabia que ele era seu rolo, me desculpe!

-Que desculpa o que, daqui pra frente nem quero mais te ver! Oferecida!

-Tchau pros dois.

-Moço, queria uma de kiwi com vodka. E você, Henrique?

-Ah, uma tequila. Dupla.























27 de nov. de 2007

A Camisola Vermelha

Certo dia, Maria acordou menos nervosa com a vida. Esticou os braços para alongar o sono e respirou tranquila as nove da manhã.
Ela pensou que não queria mais cuidar da casa, não queria mais olhar os filhos e que aquela história de viver na miséria por orgulho já deu o que tinha que dar, afinal, tanta briga depois dos cinquenta anos realmente não valia a pena. Achou que ela tinha mesmo que converter suas economias em roupas, perfumes, hidratantes e um pijama de seda que estava namorando fazia tempo.
Nem uma gota de remorso ela sentiu. Tomou café assistindo a Record e comeu 3 fatias de panetone.
Vestiu-se com o vestido novo de viscose, escovou o cabelo e maquiou-se, arrematando a produção com duas espirradinhas de perfume francês que guardava somente pra ocasiões especiais. Saiu para a rua dirigindo seu carro novo, para o shopping mais caro da cidade.
Almoçou comida japonesa, experimentou sapatos em cinco lojas e comprou 2 cds de música brasileira. Tomou sorvete de Tiramissu e por fim, parou na loja de lingerie para ver o tal pijama.
Era uma camisola vermelha florida, com o robe combinando. Tinha também os chinelinhos de pelinhos vermelhos, com saltinhos. Dignos de divas de novela.
Comprou à vista sem se preocupar e saiu da loja feliz, segurando as alças da sacola com imenso prazer.
Maria voltou pra casa e esticou o pijama vermelho em cima da cama de casal. Espirrou perfume nele. Lembrou-se de uma entrevista com Hebe Camargo, onde ela confessava não conseguir dormir sem passar um certo perfume francês antes. Sentiu-se um pouco Hebe Camargo e foi tomar seu banho de espuma ouvindo os Cds novos no banheiro.
Quando o filho chegou para o almoço, encontrou Maria passando batom nos lábios e cantarolando. Perguntou onde ela ia.
Ela disse que ia ao cinema, depois ia sair com um amigo. O rapaz estranhou, mas calou-se. Só deteve seu olhar na camisola vermelha em cima da cama e imaginou o que realmente sua mãe estava tramando. Resolveu deixar pra lá e viver sua vida. Ele preferia imaginar sua namorada de camisola do que a sua mãe, afinal de contas.

21 de nov. de 2007

Burlesco

Outro dia me pediram um café pequeno, fraco e doce. Não gosto. Gosto de café de bêbado, forte e quente, pouco adoçado.
Tinha acabado de varrer a calçada das folhas da pata-de-vaca que não venciam de cair. As pombas faziam a festa sobre o telhado, comendo as frutinhas que saíam das vagenzinhas marrons. Chegavam a irritar com o sapateado de suas patinhas sujas nas telhas de fibra.
Sentei na cadeira da cozinha, peguei meu livro de passatempos da Coquetel. Eu lutava pra não olhar nas resoluções da última página. Fiquei martelando aquela palavra que faltava para completar a parte de baixo da cruzadinha: Burlesco.
Eu me dei conta que não tinha a mínima idéia do que significava esta palavra.
O telefone tocou. Não ouvi. Tocou cinco vezes. Não consegui soltar a caneta. Batia a ponta no quadrinho em branco. Não sei, parece que o mundo parou e nada mais importava senão o burlesco.
Tive a tentação de correr pro dicionário. Não, calma. Tentarei a transversal: Hipotético. Demais.
Ah, a outra transversal é: Mulher da Classe A. Essa eu sei: Rica.
É uma charada silábica. O sinônimo de burlesco começa com CA.
A panela de pressão começou a apitar. Nem liguei. Aliás, o feijão que queimasse. Não tinha ninguém pra comer em casa hoje. Burlesco. CA-QUE. Tinha quatro sílabas. Os dedos roçavam a última página. Não, espera.
Hipotético cruza com o cume da montanha: Pico. Hipotético termina com CO. Droga, não sei.
Tá, Hipotético: Suposto, Variante, Teórico! TE-O-RI-CO.
Já tenho a segunda sílaba: RI.
A campainha está tocando. Vou fingir que não estou. O homem que vende sacos de lixo passa todo santo dia nessa hora. Não preciso.
Burlesco significa algo : CA-RI. Não sei. Martelo de novo a ponta da caneta no quadrinho branco.
Vou olhar no dicionário da Marina, no quarto dela. Olhar na última página, jamais.
B, Ba, Be, Br, Bu. Burlesco: Paródia, Ridículo, Caricato. Achei!
CARICATO!
Corri para preencher as lacunas burlescas da página 21, silábica. Aproveitei pra colocar a panela na água fria e atender o telefone.
Sentei de novo na mesinha e outro desafio me encarava: Como morreu Luís XVI? A segunda sílaba é CA, do Caricato.

13 de nov. de 2007

Paciência

Chegou o chefe. Com aquela cara de pouco amigos. Bateu a porta atrás de si provocando uma corrente de ar que derrubou os papéis da mesa. Ele reclamava da conta de água, que tinha chegado à R$300,00 no mês passado e depois que pegou um café, sentou-se na cadeira de interlocutor da recepção e pôs-se a desfiar seus problemas mais recentes para Wânia, a secretária.

-A vida tá difícil, sabe? O condomínio subiu, a conta do restaurante subiu, o seguro do meu carro, da minha moto, da minha casa na praia e do meu apartamento também subiram. Estou bem preocupado.

-Nem me fale, Doutor. Lá em casa, cortamos a despesa do supermercado pela metade.

-Mas então, como eu dizia: Minha mãe foi internada semana passada com a diabete lá na estratosfera. Lá vai dinheiro com remédios pra ela.

-Meu filho está com dengue. Domingo passamos o dia todo no hospital com o coitadinho. Eu fico aqui no escritório com o coração na mão.

-E minha restituição do imposto de renda não ajudou em nada. Ainda tenho 5 prestações do Home Theater pra pagar...E esse mês, se não for sorteado no consórcio da lancha, desistirei.

-E eu tenho que acertar o carnê da C&A porque já tão me ligando faz 3 semanas!

-Bem, Wânia, o segredo de tudo é a paciência.

-É verdade, Doutor. Acredito em Jesus e na vontade de Deus. Temos que ter paciência e confiar.

-Poisé.

O chefe termina o café e sobe para a sala dele pra jogar uma partidinha de Paciência. Já a Wânia preferiu o Campo Minado.

9 de nov. de 2007

Vodka

Tenho algumas reclamações sobre meu marido. Eu o odeio. Ele tem essa mania nojenta de não ter opinião. Ele me irrita profundamente. Chego a ficar cega de ódio e ponto de querer sufocá-lo com um saco do Carrefour. Tenho pena dele, ele é tão patético. Esse vício podre e imundo de assistir programas policiais e as conversas ridículas dos amigos ridículos dele, sobre as porcarias das revistas científicas e o último congresso de Cosplays do Star Wars. Como eu ODEIO Star Wars! Aquele amigo panaca que se veste de Darth Vader e leva o filho de 5 anos junto, vestido de Mestre Yoda. Puta falta do que fazer. Por que não vão arrumar uma vida pra viver??
Toda vez que ele sai vestido de Trooper, me dá um nó no estômago e um gosto amargo na boca. Vontade de jogar aquele capacete de merda pela janela do décimo andar.
Ele chegou. Vou esconder esse caderno e fingir que estou lendo.

-Olá, minha princesa.

-Oi. (Princesa? Que cafona)

-Como foi seu dia?

-Normal, cheguei às 5, tomei um banho e agora estou descansando. (Agora ele perguntará do jantar)

-Descansando...O que vamos jantar hoje?

-(Que previsível!) Não sei, tem a pizza de ontem e você pode fazer um miojo também. Tem um resto de vinho na geladeira, se quiser. Não vou comer, não estou com fome.

-Certo, minha querida. Não vai perguntar como foi meu dia?

-
Ah, é. Como foi seu dia? (Que saco...)

-Meu dia foi ótimo. Encontrei o Joca na rua e marcamos de almoçar amanhã. Ele me contará sobre sua viagem a Machu Pichu. Mal posso esperar. Você pode ligar na ESPN pra assistirmos o campeonato de snooker feminino?

-
Sim, vou ao banheiro e já volto.


O psicólogo fala pra eu não me preocupar porque é uma crise passageira. Eu não sei. Estou agora trancada no banheiro com esse caderno e não sinto vontade de voltar para a sala e assistir o snooker enquanto meu marido baba no meu pijama. Vou trocar de roupa e sair. Talvez ele não perceba.


-Vai sair, minha fada?

-Vou. Vou comprar cigarros. (Que desculpa imbecil)

-E pra que levar a garrafa de vodka?

-Vou dá-la ao porteiro, acho que ele está se sentindo meio sozinho. E temos mais três em casa.

-Certo, pitchuca. Não demora, tá?

-Tudo bem.

5 de nov. de 2007

Paranóia Encanada

A campainha toca

- Quem é?

-O zelador.

-O que quer?
Não tenho dinheiro hoje.

-Quero ver o encanamento do banheiro, o senhor permitiria?

-Você tem um mandado?

-Não, há um vazamento no andar de baixo. Preciso vistoriar.

-Eu não abro sem mandado. Estou ligando pro meu advogado.

-Não tem necessidade, meu senhor. Por favor, me deixe entrar...

-Eu conheço essa história. Vocês entram na casa dos outros, mexem em seus encanamentos, vasculham nossa vida. Eu sei de tudo, eu sei da conspiração! Não deixarei nenhum encanador roubar a minha vida.

-O senhor está exagerando. Agora, por favor. Não temos o dia todo!

-Não abrirei a porta, não adianta. Chame a polícia se quiser.

-Como quiser, senhor.

Minutos depois, o zelador volta a tocar a campainha, dessa vez com uma conta de luz nas mãos.

-Quem é?

-Detetive Palhares, Polícia Militar -Assuntos de Serviços Gerais. Senhor Alvarenga se encontra?

-Pois não, Detetive. É ele.

-O senhor faça o favor de abrir a porta?

-O detetive tem mandado de busca?

-Claro que tenho, aqui está: (Mostrando a conta de luz no olho mágico).


Silêncio. A porta se abre.


-P-Posso saber do que se trata?

-Verificamos que seu apartamento está causando problemas. Estou investigando a vizinhança e concluí que o senhor está encrencado.

O senhor Alvarenga fica pálido e deixa-se cair sentado na poltrona enquanto o detetive Palhares continua seu parecer:

-Há um grave entupimento no seu ralo do banheiro. Teremos que chamar a equipe forense para analisar os fragmentos encontrados no seu box, senhor. Enquanto isso, recomendo que o senhor não saia da cidade. É um conselho de amigo.

O detetive então chama seu assistente que isola o banheiro com uma fita amarela listrada de preto. O senhor Alvarenga começa a pensar em ligar para seus parentes de Botucatu perguntando se poderia passar uns dias por lá, mas logo entende que melhor seria ligar para seu advogado. Fugir seria uma confissão de culpa.




























1 de nov. de 2007

The Amazing Race

O dia a dia de Christa, a senhora de 64 anos que trabalha como office-boy do escritório, não é nada monótono.
Como variante da expressão que mais tarde virou uma profissão e tem piso salarial, Dona Christa deveria delicadamente ser chamada de: office-lady.
Decoradora aposentada, ela vem e volta todos os dias de ônibus pelo corredor da Santo Amaro até a São Gabriel, caminhando o resto do percurso até sua casa.
Nos vemos quase diariamente e ao chegar, quando tomamos nosso primeiro café, ela me conta sua última aventura.
São histórias urbanas que esboçam um pequeno manual de como sobreviver no trânsito de São Paulo. Uns dias ela chega chorando, outros às gargalhadas. E eu já olho e pergunto qual foi a odisséia do transporte público da vez.
São cruzamentos fechados, carros em fila dupla, conspirações de motoristas rivais, auxílio de onde menos se espera, baratas causando histeria coletiva dentro ônibus...Cada vez mais a diversidade de eventos se multiplica e minhas manhãs são sempre enriquecidas.
A Dona Christa talvez nem saiba o que é um blog. Mas ela é valente e não se dobra à idade que avança mais à medida que os filhos envelhecem e sai com seu namorado aos fins de semana, beberica sua caipirinha merecida e cultiva suas plantinhas em seu apartamento que não tem tv a cabo e nem conexão banda larga.
Na segunda-feira sai pela rua com sua pastinha com documentos, correndo atrás do ônibus Paraisópolis pra integrar mais uma cena de seus contos reais.

31 de out. de 2007

Destino final

A necessidade de resumir, de condensar, de converter tudo o que sou, numa latinha.
Guardarei minha alma extra-virgem e embalada à vácuo num receptáculo metálico com prazo de validade indeterminado.
Contarei com segredos de corredores de supermercados, de fofocas de Donas de Casa, com o trato dos repositores que me colocarão em lugares estratégicos a fim de ser consumida.
Passarei por esteiras de caixas, por leitores de código de barra que lerão o meu significado e traduzirão o meu valor nas telas das registradoras. Serei incluída no cupom fiscal como apenas mais um item da longa tira de papel expelida pela máquina.
Viajarei num porta-malas qualquer para cumprir o destino final: a prateleira embaixo da pia, junto ao sal, o ajinomoto e o vinagre de maçã. E, num dia desses, alguém abrirá meu cárcere e eu serei displicentemente jogada sobre uma folha de alface.