6 de dez. de 2007

Não subestime baratas

Havia uma montoeira de tábuas de madeira, móveis destruídos pela ação do tempo e da chuva, rolos de papelão, cadeiras quebradas e toda a espécie de entulho possível no quintal.
Os donos da casa não tomavam providências porque simplesmente não tinham tempo ou estavam ocupados demais discutindo a relação que estava prestes a ruir.
Que importava aquele lixo todo perto de uma vida conjunta que acabaria a qualquer toalha molhada que o rapaz deixasse sobre a cama? Tanto fazia.
Era assim que pensavam as baratas que habitavam o cantinho escuro e abafado daquele nicho de madeira branco, logo à esquerda do botijão de gás.
Elas iam e vinham atraídas pelo cheiro de café adoçado que tomava conta da casa duas vezes por dia. Elas se concentravam e se organizavam para agir justamente quando a movimentação da casa aumentasse e os berros da moça dispersassem qualquer atenção que poderia denunciar a presença delas.
Esses tais insetos não gostavam de lixo, nem de esgoto. Gostavam de calor, açúcar e gostavam principalmente dos restinhos de comida que o rapaz deixava cair no carpete quando comia na sala. Viviam em êxtase quando ele esquecia suas toalhas amontoadas na área de serviço, aquele monte de panos úmidos e com cheirinho de mofo todo especial.
Elas festejavam quando a moça inventava de cozinhar para o moço. Ele não comia quase nada e o lixo do dia ficava todo requintado.
Elas vibraram quando a moça dispensou a faxineira porque desconfiou que o moço arrastava uma asa para ela. Ficaram 3 meses livres dos apuros, das vassouradas, chineladas e veneno.
A vida era feliz na família de baratas que crescia mais a cada dia. Claro que elas sabiam que não duraria pra sempre, pois baratas não são bem vindas na sociedade dos humanos, são hostilizadas por denotarem abandono e sujeira.
Com esta consciência, viviam preparadas para situações perigosas, desenvolveram técnicas de fuga e tomaram lições de teatro com uma barata que havia morado na cozinha do Teatro Municipal por 3 anos e tinha muita experiência nisso. Estavam preparadas para tudo que viesse.
E assim, anos de paz naquele cantinho estariam para terminar naquele dia que um caminhão baú estacionou na frente da garagem.

Uma movimentação estranha tomou conta da casa e homens vestidos de laranja começaram a levar os móveis, aparelhos e pertences em caixas, para dentro do enorme baú.
O alarme de perigo havia sido dado um mês atrás quando uma companheira notou que a moça não fazia mais o café e eles pouco ficavam na casa.
As baratas entenderam que aquele podia ser o fim de tudo e antes que o pânico se instalasse na colônia, resolveram acalmar os ânimos e traçar um plano.

O dia correu tranquilo e o trânsito dos homens-laranja (como foram apelidados na colônia) parou no início da noite.
As baratas preferiram descansar e se alimentaram das últimas provisões que encontraram na casa. Era uma época difícil aquela.
Mal amanheceu e aqueles homens voltaram a trabalhar na casa. Levaram os utensílios da cozinha e os sofás da sala dessa vez. Pararam pra almoçar e descansaram deitados no quintal. A moça não apareceu em casa naquele dia.
Depois do almoço, cinco laranjas se aproximaram do entulho no fundo do quintal e começaram a retirar tábua por tábua e a jogar o que não prestava numa caçamba que a moça tinha pedido.
As baratas então se prepararam para o pior.
Assim que removeram as tábuas, compensados e caibros, puseram-se a mexer nos móveis destruídos, se aproximando cada vez mais da colônia.
Um dos homens colocou o pé na frente do armário branco onde elas estavam e ouviu-se um grito de guerra. Duas mil, oitocentas e setenta e quatro baratas partiram para cima do pobre funcionário provocando uma reação de asco e espanto. Outras setecentas formaram barricadas à esquerda e à direita do grupo de laranjas e as quinhentas remanescentes cobriram a retaguarda.
O grupo de funcionários da mudança ficou sem ação diante daquela quantidade de baratas que nunca viram ao mesmo tempo e um deles saiu correndo e pisoteando as bravas baratinhas. Baixas eram previsíveis contando com o tamanho dos humanos.
Os que ficaram se perguntaram o que fazer. Um deles sugeriu que fossem embora e voltassem no dia seguinte com um dedetizador.
Depois do levante e do resultado positivo, as baratas comemoraram brevemente a vitória e oraram por seus mortos em combate, traçando estratégia para o dia seguinte.

A manhã chegou e os laranjas voltaram, dessa vez equipados com uniformes de borracha e máscaras cobrindo seus rostos. Estavam armados até os dentes.
Voltaram a desmontar a pilha de móveis que haviam deixado de lado e via-se que sentiam medo de algum tipo de ataque surpresa daqueles seres nojentinhos.
De início, nada encontraram. Um deles descobriu o "estoque" de comida que mantinham embaixo de um taco. Mas nenhuma barata viram.
Outro achou um suposto "banheiro" de barata, mas nada de barata. E assim foi. Acharam todos os tipos de vestígios de que havia ali uma verdadeira metrópole de baratas. Mas tinha sido completamente evacuada da noite para o dia.
"Onde estão as danadinhas?" - disse um laranja para o outro. "Não sei. Será que estão com medo da gente?" - perguntou o outro. "Elas devem ter fugido pelo esgoto durante a noite" - disse o laranja mais gordo e que aparentava ser o líder.
Deram de ombros e decidiram remover os aparatos para extermínio de insetos e continuar o trabalho de carregar o caminhão, aliviados.
Levaram a escada de alumínio, os três varais, os dois botijões de gás, o fogão do quintal, os quinze rolos de papelão e a tábua de passar e o antigo louceiro estilo rústico, os dois gabinetes de banheiro e por fim, o pesado cofre de ferro.
Exaustos, pararam pra tomar um café no boteco na esquina. Um deles comentou que o sumiço das baratas era um mistério e outro retrucou que o problema deveria ser comunicado à nova dona da casa. Chegaram a conclusão de que o melhor seria contar a história para seus filhos omitindo, é claro, a parte em que eram vítimas de um ataque organizado de baratas.
Nenhum deles percebeu que o louceiro rústico de madeira estava mais pesado do que de costume. Eram as quase quatro mil baratas se amontoando nas gavetas, prateleiras e buracos, em silêncio e profundamente ofendidas por terem sido acusadas de fugir pelo esgoto.

Um comentário:

blogger lixo dos infernos disse...

nunca mais verei as baratas da mesma forma depois disso xD