12 de dez. de 2007

Mufa

É, todo dia parece tranquilo. A verdade é que no ócio, as coisas imperceptíveis ficam evidentes.
Num dia qualquer você começa a pensar em coisas improváveis e sem embasamento científico. Uma delas seria a hereditariedade do azar.
Eu vi isso num filme argentino outro dia: um rapaz que era a personificação do azar, coitado. Ele conseguiu perder o emprego, ser assaltado e ainda um carro entrou em sua sala de estar no mesmo dia. Existe uma gíria para isso na Argentina: Mufa.

Se eu estivesse muito ocupada talvez não teria oportunidade de considerar que isso pudesse acontecer com alguém de fato até que uma sucessão de curiosidades acontecesse num dia só, diante dos meus olhos.
Certo dia, chego ao escritório e noto que as tralhas que acumulavam escorpiões, esquilos e aranhas armadeiras haviam sido derrubadas pela chuva do dia anterior e estavam espalhadas pelo quintal. Latas de tinta, aguarrás, conduítes e spots de lâmpadas rolaram até o portão.
Eu não teria rido por esse fato se elas não tivesse sido arrumadas no dia anterior pela faxineira que bateu no peito com orgulho dizendo que fez tudo sozinha.
Controlei o espírito de porco e dissimulei um desapontamento solidário.
Ansiosa pra tomar um café, vou até a cozinha e vejo o sócio preparando o seu na cafeteira elétrica. Ele ficou feliz por que tinha chegado primeiro e teve oportunidade de me servir alguma vez na vida.
A felicidade durou 5 minutos. A cafeteira elétrica entupiu e a mistura de pó e água começou a transbordar, sujando o plástico branco (que era pra ser preto, segundo a compra pela internet). O sócio se desesperou, ligou a torneira e enfiou a cafeteira ligada embaixo da água. Eu gritei e avancei no botão para desligar antes que o pior acontecesse.
Ele derrumou café na mão, deu um grito e soltou a jarra de vidro. Consegui segurá-la, mas o café caiu direto no piso branquinho. Ele pegou o filtro cheio de pó molhado e jogou no lixo que estava com a tampa fechada. Espirrou tudo na geladeira.
Depois do episódio em que o sócio desistiu de me servir café e eu acabei me conformando em ir pra cozinha de novo, sentei no posto de trabalho e fiquei rindo discretamente da situação.
Duas horas depois, ele saiu atrasado prum compromisso. Chovia forte aqui e estava um vento frio. Ele se despediu e saiu falando no celular.
Dez minutos depois, a porta se abre e o sócio entra, molhado da cabeça aos pés me dizendo:
-Meu carro quebrou, o que faço?
-Como quebrou?
-Não sei, eu virei o volante, ouvi um click e ele quebrou. Acho que foi o eixo.
-Meu Deus, como você conseguiu? Deixa eu ver.
O carro estava atravessado no meio da rua e uma fila de carros já se formava atrás dele. Eu já podia ouvir as buzinas e os xingamentos.
-Vamos chamar um guincho.
-Onde tem guincho?
-Na lista telefônica...
-Liga lá pra mim. Melhor, vou ligar pro meu mecânico.
Agora estávamos os dois molhados e ligando pro mecânico. O mecânico disse que tinha um guincho de confiança e que o mandaria em 30 minutos.
Eu voltei pro meu posto de trabalho e uma hora depois, o guincho chegou.
O sócio fez um gesto que dizia para eu ir olhar.
Era uma Kombi daquelas que usam pra fazer carreto, com um motorista centenário que segurava uma cordinha.
Eu mais uma vez segurei o riso e me concentrei na arrumação das latas de tinta e dos conduítes molhados do quintal.
Sentimos um cheiro de fumaça intenso no quintal e fui averiguar o que acontecia.
O sócio me puxou de canto e disse:
-O guincho quebrou.
-Ah é? Mas olha esse carro! E agora?
Os carros se amontoavam para passar pela única pista a que ficou resumida a rua. Eu conseguia ver que ele estava desesperado. Mas mesmo assim, uma única palavra me veio à cabeça: Mufa.
O sócio é argentino, não podia ser diferente.