19 de dez. de 2007

À Espera

Estou intranquila. Mexeram-me de novo, esse balanço me enjoa as vezes.
Não é só a sensação de desconforto apertando a garganta ou a insensibilidade dos meus pés adormecidos.
Hoje chutei duas vezes quando o som estava alto demais e uma vez quando tocou a campainha.
Me bateu um nervoso, uma vontade de tremer. Essa expectativa está acabando comigo.
Quando será a hora? Será que eu não vejo a hora? Será que vou sair daqui um dia?
Não vejo luz há meses...
Primeiro a promessa de que tudo correria bem e a proteção que me ofereceram pareceram tentadores. Não pude recusar. Aceitei e hoje não consigo controlar minha ansiedade. Eu não gosto de condições mas, não posso deixar que elas rodeiem meus pensamentos se infiltrando em todas as possibilidades.
Eu só ouço pessoas passando, eu só escuto os passos e confesso que quando não ouço nada, ouço mais o medo batendo no meu peito e tirando minha respiração. Eu quero tremer. Eu ouço vozes abafadas e o calor. Esse calor intenso que vem em ondas e parece vir de fora pra dentro.
Não dá para gritar, essas paredes absorvem minha voz.
Eu posso contar, dormir e criar histórias para viver depois que sair daqui e é só. Eu só posso esperar para viver.

12 de dez. de 2007

Mufa

É, todo dia parece tranquilo. A verdade é que no ócio, as coisas imperceptíveis ficam evidentes.
Num dia qualquer você começa a pensar em coisas improváveis e sem embasamento científico. Uma delas seria a hereditariedade do azar.
Eu vi isso num filme argentino outro dia: um rapaz que era a personificação do azar, coitado. Ele conseguiu perder o emprego, ser assaltado e ainda um carro entrou em sua sala de estar no mesmo dia. Existe uma gíria para isso na Argentina: Mufa.

Se eu estivesse muito ocupada talvez não teria oportunidade de considerar que isso pudesse acontecer com alguém de fato até que uma sucessão de curiosidades acontecesse num dia só, diante dos meus olhos.
Certo dia, chego ao escritório e noto que as tralhas que acumulavam escorpiões, esquilos e aranhas armadeiras haviam sido derrubadas pela chuva do dia anterior e estavam espalhadas pelo quintal. Latas de tinta, aguarrás, conduítes e spots de lâmpadas rolaram até o portão.
Eu não teria rido por esse fato se elas não tivesse sido arrumadas no dia anterior pela faxineira que bateu no peito com orgulho dizendo que fez tudo sozinha.
Controlei o espírito de porco e dissimulei um desapontamento solidário.
Ansiosa pra tomar um café, vou até a cozinha e vejo o sócio preparando o seu na cafeteira elétrica. Ele ficou feliz por que tinha chegado primeiro e teve oportunidade de me servir alguma vez na vida.
A felicidade durou 5 minutos. A cafeteira elétrica entupiu e a mistura de pó e água começou a transbordar, sujando o plástico branco (que era pra ser preto, segundo a compra pela internet). O sócio se desesperou, ligou a torneira e enfiou a cafeteira ligada embaixo da água. Eu gritei e avancei no botão para desligar antes que o pior acontecesse.
Ele derrumou café na mão, deu um grito e soltou a jarra de vidro. Consegui segurá-la, mas o café caiu direto no piso branquinho. Ele pegou o filtro cheio de pó molhado e jogou no lixo que estava com a tampa fechada. Espirrou tudo na geladeira.
Depois do episódio em que o sócio desistiu de me servir café e eu acabei me conformando em ir pra cozinha de novo, sentei no posto de trabalho e fiquei rindo discretamente da situação.
Duas horas depois, ele saiu atrasado prum compromisso. Chovia forte aqui e estava um vento frio. Ele se despediu e saiu falando no celular.
Dez minutos depois, a porta se abre e o sócio entra, molhado da cabeça aos pés me dizendo:
-Meu carro quebrou, o que faço?
-Como quebrou?
-Não sei, eu virei o volante, ouvi um click e ele quebrou. Acho que foi o eixo.
-Meu Deus, como você conseguiu? Deixa eu ver.
O carro estava atravessado no meio da rua e uma fila de carros já se formava atrás dele. Eu já podia ouvir as buzinas e os xingamentos.
-Vamos chamar um guincho.
-Onde tem guincho?
-Na lista telefônica...
-Liga lá pra mim. Melhor, vou ligar pro meu mecânico.
Agora estávamos os dois molhados e ligando pro mecânico. O mecânico disse que tinha um guincho de confiança e que o mandaria em 30 minutos.
Eu voltei pro meu posto de trabalho e uma hora depois, o guincho chegou.
O sócio fez um gesto que dizia para eu ir olhar.
Era uma Kombi daquelas que usam pra fazer carreto, com um motorista centenário que segurava uma cordinha.
Eu mais uma vez segurei o riso e me concentrei na arrumação das latas de tinta e dos conduítes molhados do quintal.
Sentimos um cheiro de fumaça intenso no quintal e fui averiguar o que acontecia.
O sócio me puxou de canto e disse:
-O guincho quebrou.
-Ah é? Mas olha esse carro! E agora?
Os carros se amontoavam para passar pela única pista a que ficou resumida a rua. Eu conseguia ver que ele estava desesperado. Mas mesmo assim, uma única palavra me veio à cabeça: Mufa.
O sócio é argentino, não podia ser diferente.

7 de dez. de 2007

O vazio

Para Cláudio


Deveria ser o olhar dela. Com algo de gélido, cansado. Me assustei, desviei o olhar para o tráfego da Avenida. Contei as ambulâncias que passaram, eu me retirei dali...Acho que queria outro mundo.
As crianças estavam fora. Um no inglês, o outro na natação. Mais um motivo para divagar na janela.
Ela me perguntou o que eu fazia, pra onde e pra quem olhava tanto. Eu não soube o que dizer porque acho que se dissesse "para o vazio", seria mal interpretado.
Ela pegou todos os cadernos e livros que estavam na mesa e saiu batendo a porta, com cara de brava.
Eu a vi descer até o portão, esperar o sinal de pedestres abrir, atravessar a rua e sumir atrás de um ônibus no cinza do dia. Eu esperei minha vida inteira para notar a cor do dia, mas nada fiz. Só fiquei ali, embaçando a vidraça com o meu hálito e olhando o vazio.

6 de dez. de 2007

Não subestime baratas

Havia uma montoeira de tábuas de madeira, móveis destruídos pela ação do tempo e da chuva, rolos de papelão, cadeiras quebradas e toda a espécie de entulho possível no quintal.
Os donos da casa não tomavam providências porque simplesmente não tinham tempo ou estavam ocupados demais discutindo a relação que estava prestes a ruir.
Que importava aquele lixo todo perto de uma vida conjunta que acabaria a qualquer toalha molhada que o rapaz deixasse sobre a cama? Tanto fazia.
Era assim que pensavam as baratas que habitavam o cantinho escuro e abafado daquele nicho de madeira branco, logo à esquerda do botijão de gás.
Elas iam e vinham atraídas pelo cheiro de café adoçado que tomava conta da casa duas vezes por dia. Elas se concentravam e se organizavam para agir justamente quando a movimentação da casa aumentasse e os berros da moça dispersassem qualquer atenção que poderia denunciar a presença delas.
Esses tais insetos não gostavam de lixo, nem de esgoto. Gostavam de calor, açúcar e gostavam principalmente dos restinhos de comida que o rapaz deixava cair no carpete quando comia na sala. Viviam em êxtase quando ele esquecia suas toalhas amontoadas na área de serviço, aquele monte de panos úmidos e com cheirinho de mofo todo especial.
Elas festejavam quando a moça inventava de cozinhar para o moço. Ele não comia quase nada e o lixo do dia ficava todo requintado.
Elas vibraram quando a moça dispensou a faxineira porque desconfiou que o moço arrastava uma asa para ela. Ficaram 3 meses livres dos apuros, das vassouradas, chineladas e veneno.
A vida era feliz na família de baratas que crescia mais a cada dia. Claro que elas sabiam que não duraria pra sempre, pois baratas não são bem vindas na sociedade dos humanos, são hostilizadas por denotarem abandono e sujeira.
Com esta consciência, viviam preparadas para situações perigosas, desenvolveram técnicas de fuga e tomaram lições de teatro com uma barata que havia morado na cozinha do Teatro Municipal por 3 anos e tinha muita experiência nisso. Estavam preparadas para tudo que viesse.
E assim, anos de paz naquele cantinho estariam para terminar naquele dia que um caminhão baú estacionou na frente da garagem.

Uma movimentação estranha tomou conta da casa e homens vestidos de laranja começaram a levar os móveis, aparelhos e pertences em caixas, para dentro do enorme baú.
O alarme de perigo havia sido dado um mês atrás quando uma companheira notou que a moça não fazia mais o café e eles pouco ficavam na casa.
As baratas entenderam que aquele podia ser o fim de tudo e antes que o pânico se instalasse na colônia, resolveram acalmar os ânimos e traçar um plano.

O dia correu tranquilo e o trânsito dos homens-laranja (como foram apelidados na colônia) parou no início da noite.
As baratas preferiram descansar e se alimentaram das últimas provisões que encontraram na casa. Era uma época difícil aquela.
Mal amanheceu e aqueles homens voltaram a trabalhar na casa. Levaram os utensílios da cozinha e os sofás da sala dessa vez. Pararam pra almoçar e descansaram deitados no quintal. A moça não apareceu em casa naquele dia.
Depois do almoço, cinco laranjas se aproximaram do entulho no fundo do quintal e começaram a retirar tábua por tábua e a jogar o que não prestava numa caçamba que a moça tinha pedido.
As baratas então se prepararam para o pior.
Assim que removeram as tábuas, compensados e caibros, puseram-se a mexer nos móveis destruídos, se aproximando cada vez mais da colônia.
Um dos homens colocou o pé na frente do armário branco onde elas estavam e ouviu-se um grito de guerra. Duas mil, oitocentas e setenta e quatro baratas partiram para cima do pobre funcionário provocando uma reação de asco e espanto. Outras setecentas formaram barricadas à esquerda e à direita do grupo de laranjas e as quinhentas remanescentes cobriram a retaguarda.
O grupo de funcionários da mudança ficou sem ação diante daquela quantidade de baratas que nunca viram ao mesmo tempo e um deles saiu correndo e pisoteando as bravas baratinhas. Baixas eram previsíveis contando com o tamanho dos humanos.
Os que ficaram se perguntaram o que fazer. Um deles sugeriu que fossem embora e voltassem no dia seguinte com um dedetizador.
Depois do levante e do resultado positivo, as baratas comemoraram brevemente a vitória e oraram por seus mortos em combate, traçando estratégia para o dia seguinte.

A manhã chegou e os laranjas voltaram, dessa vez equipados com uniformes de borracha e máscaras cobrindo seus rostos. Estavam armados até os dentes.
Voltaram a desmontar a pilha de móveis que haviam deixado de lado e via-se que sentiam medo de algum tipo de ataque surpresa daqueles seres nojentinhos.
De início, nada encontraram. Um deles descobriu o "estoque" de comida que mantinham embaixo de um taco. Mas nenhuma barata viram.
Outro achou um suposto "banheiro" de barata, mas nada de barata. E assim foi. Acharam todos os tipos de vestígios de que havia ali uma verdadeira metrópole de baratas. Mas tinha sido completamente evacuada da noite para o dia.
"Onde estão as danadinhas?" - disse um laranja para o outro. "Não sei. Será que estão com medo da gente?" - perguntou o outro. "Elas devem ter fugido pelo esgoto durante a noite" - disse o laranja mais gordo e que aparentava ser o líder.
Deram de ombros e decidiram remover os aparatos para extermínio de insetos e continuar o trabalho de carregar o caminhão, aliviados.
Levaram a escada de alumínio, os três varais, os dois botijões de gás, o fogão do quintal, os quinze rolos de papelão e a tábua de passar e o antigo louceiro estilo rústico, os dois gabinetes de banheiro e por fim, o pesado cofre de ferro.
Exaustos, pararam pra tomar um café no boteco na esquina. Um deles comentou que o sumiço das baratas era um mistério e outro retrucou que o problema deveria ser comunicado à nova dona da casa. Chegaram a conclusão de que o melhor seria contar a história para seus filhos omitindo, é claro, a parte em que eram vítimas de um ataque organizado de baratas.
Nenhum deles percebeu que o louceiro rústico de madeira estava mais pesado do que de costume. Eram as quase quatro mil baratas se amontoando nas gavetas, prateleiras e buracos, em silêncio e profundamente ofendidas por terem sido acusadas de fugir pelo esgoto.