28 de dez. de 2008

O Porrete

Passos apertados no meio da rua e um arroto alto que vibrou meus tímpanos. Ele sabia quem estava ali passando àquela hora da madrugada embaixo de sua janela.
Abriu o olho que não estava amassado por deitar a cabeça de lado no travesseiro e suspendeu a respiração. Era aquele homem que trabalhava na borracharia e que sabia ser um espião, um voyeur de sua vida.
Ele estava em toda parte: na fila do banco, na borracharia, na padaria (ao lado da borracharia), no posto dos vigilantes noturnos, no posto de gasolina...A onipresença dele se tornou legitimamente incômoda depois de dois anos de encontros frequentes que fugiram completamente da casualidade.
Depois do arroto sonoro no meio da madrugada, vestiu o robe atoalhado muito irritado e abriu o portão para tirar satisfações sobre a conduta daquele homem.
Interrompo aqui a narrativa que corresponde aos fatos que testemunhei sobre a possível paranóia de meu marido em estar sendo vítima de perseguição.
Esta é minha versão: uma pequena amostra do que é o convívio com seres com estes enfrentamentos psicológicos e como estou usando este caso para prosseguir nas minhas investigações sobre seu comportamento.

O relato a seguir, deixei que meu marido transcrevesse tal como foi:

"Logicamente, antes de descer me muni de um porrete improvisado que peguei na garagem e escondi embaixo do robe.


-Você! (disse em tom alto para que ele me olhasse no rosto. O único rosto acordado da rua).



O rapaz se virou e disse:



-Eu?



-O que você quer de mim?




-Nada, senhor.




-Não é possível, o que você faz aqui agora na frente da minha casa?




-Tava tomando umas com o pessoal lá embaixo, to indo pra casa...




-E porque arrotou embaixo da minha janela?




-Ai, desculpa moço. Foi mesmo sem querer, acho que eu to meio alto, sexta-feira...O senhor sabe, né?




-Qual seu nome?




-Edson.




-Quantos anos você tem?




-Vinte e cinco.




-E há quanto tempo vêm me observando?




-Ah, deixa eu ver...Uns dois anos.




-Você confessou que me observa agora. Quem te mandou fazer isso?




-Ninguém, senhor. Eu gosto de olhar as pessoas, é só isso mesmo...Eu juro.




-E porque eu?




-Porque eu achei o senhor legal pra observar.




-E o que me faz "legal de observar"? Já passou pela sua cabeça que eu poderia não gostar disso?




-Ah sim, claro. Por isso eu nunca falei com o senhor antes. Achei que poderia ser meio intrometido demais e o senhor podia me estranhar. Sabe, se eu conto pras pessoas que elas estão sendo observadas, podem se sentir mal. Mas o senhor fique tranquilo pois eu faço isso porque eu gosto mesmo, como dizem, é um hobby que eu tenho.


-Eu me incomodo sim, rapaz. O que você acha que está fazendo? Isso é invasão de privacidade, posso colocar você na cadeia, moleque!



-Ah, o senhor não faria isso. Eu sou pobre, não tenho nada na vida, pra que o senhor quer me prender? Eu não sou ninguém. Além disso eu gosto do senhor.




-Você gosta de mim por que?



-Por que o senhor sempre coloca vinte reais de gasolina no carro a cada dois dias, fuma em média quinze cigarros por dia, gosta de música clássica e de dirigir sem destino. Por que o senhor sempre compra três pães de manhã e dá o terceiro pras pombas da rua, mesmo odiando a sujeira que elas fazem no seu telhado.
Eu gosto do senhor porque compra no mesmo mercado há dois anos que o conheço e raramente recebe visitas em casa, o que me fez pensar no volume de coisas que compra comparado ao tempo e o número de pessoas que consomem. O senhor mora sozinho e dorme em frente à tevê quase todos os dias, isso quando não dorme lendo alguma coisa na cama e precisa também fazer um rodízio de pneus, se eu puder aqui fazer uma sugestão.



-Eu sou um cara normal, meu filho. Um cara sozinho, do bem. Não gosto da idéia de ser vigiado. Ninguém gostaria. Mas, honestamente achei seu ponto de vista sobre mim um tanto interessante. Poderíamos um dia conversar melhor sobre isso, de verdade.


(Dito isso, deixei o porrete cair no chão e o barulho fez o cão do vizinho do lado latir).



-O senhor pretendia me bater?



-Não, o que é isso...Imagine, eu te conheço de vista há um tempo. Nem pensei em agredí-lo, mas nesses dias, a gente tem que se sentir mais seguro.




-Engraçado. Nunca pensei que o senhor fosse inseguro. Mais uma pro meu caderninho.




-Caderninho? Eu estou no seu caderninho?




-Sim, está. Mas estou acabando aqui minhas observações sobre o senhor.




-Por que? Logo agora que comecei a me sentir interessante.




-Eu acho que já sei o suficiente, só isso.




Depois dessas palavras, o rapaz se despediu acenando a cabeça e eu fiquei parado na rua, com o porrete na mão.
Me perguntei por que o garoto se desinteressou. Pensei ser superficial, pensei ser um outro cara vazio daqueles que eu criticava por sustentar opiniões copiadas da televisão ou da literatura manipulativa. Mas não, eu acho que foi o porrete no fim das contas.

E a vida não tem sido a mesma desde então. Emprestei o porrete para a garotada da rua brincar de taco.
Dia desses ele voou das mãos de um deles e quebrou minha vidraça. Paciência".




Meu marido diz ser um homem sozinho, eu não penso assim. Somos casados há vinte anos e estabelecemos nosso relacionamento na individualidade. Eu o deixo ser ele e ele me deixa ser. Somos diferentes e sabemos. Por isso nos comunicamos mais por gestos do que palavras.
Ele acorda cedo e logo sai, eu fico com as despesas da casa, com a faxina. Determinamos não ter filhos. Não tenho muitos amigos e não gosto de coisas de mulher. Foi o que ele disse que mais o atraiu quando nos conhecemos. Tenho ciúmes das ausências dele mas gosto de seu carinho todos os dias de manhã quando ele traz pães frescos para o nosso café.
Seu medo de multidões nos deixa mais caseiros, admiro sua paixão pelos livros policiais.
Temo por sua saúde quando o vejo evitar demais o contato com pessoas mas prefiro acompanhá-lo de perto, ver seus gestos e adivinhar sua alma silenciosamente, para que ele não se irrite. Assim vivemos a nossa vida.