19 de fev. de 2008

O ovo

Maquinalmente, de meu observatório no alto da prateleira fiz a ronda visual nos outros produtos companheiros de data de validade.

Cansei-me de olhá-los porque representavam as coisas que mais ficavam nas gôndolas e que somente mudavam de lugar de acordo com as promoções, etiquetagens e remarcações decididas pelo o grande deus, o dono da loja. Eram os velhos de guerra que mantinham os mesmos vícios de sempre: falar mal dos perecíveis e fazer piadinhas infames sobre sua pouca permanência no local.

Eles se gabavam de terem sido trazidos de outros países, mesmo não sabendo que aquilo havia ocorrido porque o dólar havia baixado e facilitado a vida dos importadores.

Eu sempre soube de tudo isso e me mantive neutra, livre de radicais e extra-virgem em minha condição enlatada.

Uma noite, em minha vigília ouvi um burburinho na sessão de pães, ovos e leite.

Eles discutiam sobre suas origens, procedimentos e valores nutricionais. Coisa chata pra caramba que todo mundo sabia de cor. Eram novatos, tinham sido fabricados no dia anterior e estavam se vangloriando de sua frescura e aroma. Nem dei bola praquilo, mas algo me chamou a atenção.

Dentre eles, naquela sessão, havia um pequeno ovo a discursar sozinho em sua covinha do porta-ovos sobre a liberdade de cada indivíduo fazer o quiser da vida e questionava veementemente o destino que os consumidores os davam, após a compra.

Os outros ovos o ouviam calados e atentos, achando que este ovo era um lunático ou simples agitador. Mas ele não era.

Ele era um ovo consciente de seu valor protéico e certo de sua origem nobre galinácea e se negaria a ser jogado em alguém que faria aniversário ou numa careca de prefeito corrupto.

Esse ovo bradava para o consumidor que ouvisse seus apelos, que o libertasse de sua clausura e transformasse seu conteúdo em doces merengues, brilhantes quindins e lindos bolos de aniversário.

Que ele não fosse enterrado para apodrecer e ficar velho. Que ele não fosse furado e esvaziado para ser pintado na páscoa. Que parassem de associar sua origem com coelhos! Que bom mesmo era ser omelete, porque podia se reunir com amigos e trocar idéias.

Esse ovo ficou falando a noite inteira sobre isso, até que todos os artigos à venda no supermercado começaram a reclamar do barulho.

Os eletrodomésticos pediam silêncio e os artigos de jardinagem começaram a ameaçar o pobrezinho tão frágil e tão corajoso de quebrar sua casca e deixa-lo lá, se esvaindo em claras...


O ovo se calou, recolheu-se à sua covinha e deu um grande suspiro, talvez o maior de sua vida perecível.

18 de fev. de 2008

Lixo, turbante, consciência.

Certa noite de sexta-feira procurei por algumas bolachas jogadas no chão do carro no balanço diário das sobras que se acumulam nos cantinhos. Eram nove horas e eu tinha fome. Sabe-se lá quantos germes, bactérias, fungos e afins vivem aglutinados naquele pó ou se as bolachas tivessem sido alimento de algum animal estranho e fedido que deixa seu cheiro de vez em quando por lá. Melhor eu não saber.

Seguia caminhando pela calçada, com a chave na mão para desativar o alarme e notei um casal tendo uma discussão de relacionamento publicamente.

A mulher, juntava sacolas de plásticos variadas em seus braços. Devia ter uns 43 anos, pra mais. Tinha uma saia longa e um lenço amarrado na cabeça em forma de turbante.

O homem parecia mais novo e vestia uma bermuda jeans calça-cortada e estranhas botas que pareciam bem maiores que seus pés.

Ela grita pra ele, apontando para uma pilha de garrafas e latas espalhadas pela calçada:

-Râmo, home. Cata tudo isso aí.

-Tô catandu, calma mulé.

-Faiz uma hora que ocê tá catando. A gente ta assustando as pessoa.

O rapaz atrapalhava-se com tantas e garrafas vazias e poucos sacos. A mulher, sobrecarregada e impaciente, gritou:

-Você é um lixo!

Imediatamente o rapaz replicou de cabeça baixa.

-Eu não sou lixo, lixo é você.

A mulher do turbante, com despeito, atira suas sacolas no chão e vai de encontro com o rapaz que continua de cabeça baixa.

- Você não presta pra nada. Se não desse tanto trabaio essa coisa eu já teria ganhado mundo, suzinha.

O rapaz parece não se incomodar. Mas ela insiste:

-Eu digo, você é um lixo.

Ele a encara e diz:

- Eu não sou um lixo.

- Então, o que você é?

- Eu sou um catador de lixo.