Maquinalmente, de meu observatório no alto da prateleira fiz a ronda visual nos outros produtos companheiros de data de validade.
Cansei-me de olhá-los porque representavam as coisas que mais ficavam nas gôndolas e que somente mudavam de lugar de acordo com as promoções, etiquetagens e remarcações decididas pelo o grande deus, o dono da loja. Eram os velhos de guerra que mantinham os mesmos vícios de sempre: falar mal dos perecíveis e fazer piadinhas infames sobre sua pouca permanência no local.
Eles se gabavam de terem sido trazidos de outros países, mesmo não sabendo que aquilo havia ocorrido porque o dólar havia baixado e facilitado a vida dos importadores.
Eu sempre soube de tudo isso e me mantive neutra, livre de radicais e extra-virgem em minha condição enlatada.
Uma noite, em minha vigília ouvi um burburinho na sessão de pães, ovos e leite.
Eles discutiam sobre suas origens, procedimentos e valores nutricionais. Coisa chata pra caramba que todo mundo sabia de cor. Eram novatos, tinham sido fabricados no dia anterior e estavam se vangloriando de sua frescura e aroma. Nem dei bola praquilo, mas algo me chamou a atenção.
Dentre eles, naquela sessão, havia um pequeno ovo a discursar sozinho em sua covinha do porta-ovos sobre a liberdade de cada indivíduo fazer o quiser da vida e questionava veementemente o destino que os consumidores os davam, após a compra.
Os outros ovos o ouviam calados e atentos, achando que este ovo era um lunático ou simples agitador. Mas ele não era.
Ele era um ovo consciente de seu valor protéico e certo de sua origem nobre galinácea e se negaria a ser jogado em alguém que faria aniversário ou numa careca de prefeito corrupto.
Esse ovo bradava para o consumidor que ouvisse seus apelos, que o libertasse de sua clausura e transformasse seu conteúdo em doces merengues, brilhantes quindins e lindos bolos de aniversário.
Que ele não fosse enterrado para apodrecer e ficar velho. Que ele não fosse furado e esvaziado para ser pintado na páscoa. Que parassem de associar sua origem com coelhos! Que bom mesmo era ser omelete, porque podia se reunir com amigos e trocar idéias.
Esse ovo ficou falando a noite inteira sobre isso, até que todos os artigos à venda no supermercado começaram a reclamar do barulho.
Os eletrodomésticos pediam silêncio e os artigos de jardinagem começaram a ameaçar o pobrezinho tão frágil e tão corajoso de quebrar sua casca e deixa-lo lá, se esvaindo em claras...
O ovo se calou, recolheu-se à sua covinha e deu um grande suspiro, talvez o maior de sua vida perecível.
2 comentários:
Olivia, você sempre surpreende com seus textos maravilhosos.
Já disse e repito: Você tem o dom maravilhoso de entreter.
"Bom mesmo é ser omelete!!!"
Beijos do seu fã
Zovy
Teu texto está ótimo, nao tem nenhuma exposicao e ótimo de ler!
Bom ver que omantém um blog....vou adicionar este blog mais tarde no meu blog ok?
http://fotogramaexperimental.zip.net
Postar um comentário